Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Helen Beltrame-Linné​

Cabe o Brasil inteiro dentro do true crime da casa abandonada?

Podcast 'A Mulher da Casa Abandonada' reacende debate sobre a responsabilidade política do audiovisual

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A repercussão de "A Mulher da Casa Abandonada" reacendeu o debate sobre a responsabilidade política do audiovisual. Definido pelo criador Chico Felitti como uma reportagem, o produto acabou enveredando pelo gênero true crime e vem sendo acusado de, "sob a máscara espessa da excentricidade", oferecer violência racial como entretenimento.

O fenômeno chegou ao auge na última quarta-feira, quando um frenesi televisionado tomou a frente do imóvel em frangalhos de Higienópolis, revelando que muitos estavam ali atraídos pelo status de celebridade excêntrica que adquiriu a dona da casa, ignorando que se trata, ao que tudo indica, de uma criminosa.

A julgar pelas declarações de Felitti, ele iniciou o podcast movido por uma curiosidade sobre a mitologia urbana que já havia mostrado em trabalhos anteriores, especialmente na investigação sobre a figura mítica do "Fofão da Augusta", que culminou no livro "Ricardo e Vânia" (Todavia, 2019).

Talvez em sua mente ele tenha imaginado uma espécie de versão brasileira de "Grey Gardens" (1975), documentário americano que retratou as excêntricas mãe e filha que habitavam a propriedade decadente que dá título ao filme.

Contudo, ao se aproximar da casa e de sua habitante em estado de aparente degradação (física e mental) similar à do imóvel, a surpresa: tratava-se de uma mulher que havia fugido dos Estados Unidos 20 anos atrás para escapar do inquérito do FBI que averiguava acusações de escravização de uma brasileira. O produto audiovisual adquiriu, assim, uma injeção involuntária de true crime.

Com isso, mudaram as regras do jogo e a reportagem investigativa entrou no campo do entretenimento. E, por mais que o extremo rigor jornalístico da equipe a tenha afastado de tentações típicas do true crime –como ceder à curiosidade mórbida por personagens secundários da trama ou mesmo explorar a história da vítima independentemente de sua vontade–, o podcast se valeu de artifícios dramáticos como trilha sonora e manipulação do fluxo de informações para criar tensão, surpresa, emoção.

A figura de Margarida Bonetti foi cercada de uma aura de mistério que só foi desmistificada no último episódio, quando suas palavras se encarregaram de destruir qualquer fantasia a seu respeito. Infelizmente, quando o sétimo episódio foi ao ar, muitos ouvintes já se acotovelavam na frente do imóvel em busca de uma selfie com a mulher misteriosa.

Concordo com Rosane Borges quando escreve: "Deve-se admitir que uma mulher que anda com a cara besuntada de pomada […] e uma casa abandonada em Higienópolis são vocacionadas para o exercício da ficção".

Há personagens que clamam o protagonismo para si, deixando o criador num dilema: dar ou não espaço e voz para uma personagem monstruosa? No caso do podcast, dois complicadores: o que fazer quando do lado oposto está uma vítima –mulher e negra– de um crime atroz e que, ainda por cima, não quer ser colocada no holofote?

O podcast lida com a questão como pode. Dedica parte de um episódio a outras vítimas de escravização moderna, ampliando a narrativa original para apontar que aquele não é um incidente isolado: esse crime hediondo continua sendo praticado e, contrariamente ao que se imagina, acontece principalmente nas grandes cidades, acobertado pela incomunicabilidade moderna entre vizinhos.

Mas seria suficiente dedicar apenas um dos sete episódios a um tema tão relevante, que tem modalidades variadas no Brasil (dos sul-americanos presos em porões das fábricas de costura do Brás até trabalhadores rurais endividados em galpões de fazendas pelo interior do país), e inclusive no mundo, como denunciou recentemente o medalhista olímpico MoFarah, escravizado na infância ao chegar ao Reino Unido três décadas atrás?

É importante ressaltar que tudo indica que os produtores contavam com a demonização, e não glamurização, de Bonetti. Ao final de cada episódio, um aviso alerta que o podcast não é uma investigação policial e que a Folha "condena qualquer agressão e perseguição contra as pessoas aqui retratadas".

O próprio Felitti poderia questionar: se era a história de Margarida Bonetti que queria contar, o que mais se pode exigir dele além de que o faça da forma que lhe pareceu mais justa, imparcial e politicamente correta possível? Não seria suficiente o podcast ter colocado em pauta o importante tema da escravização doméstica, estimulando inclusive denúncias de crimes similares em andamento?

São questões espinhosas para as quais não tenho resposta e com as quais me confronto de forma cotidiana no meu trabalho como roteirista. Mas creio que cabe a nós, brancos privilegiados, dar espaço para a dor dos que se sentem agredidos com as nossas escolhas. Afinal, querendo ou não, somos "uma raça que coleta os privilégios do racismo e da escravidão", como escreve Cida Bento em seu ótimo "O Pacto da Branquitude" (Companhia das Letras, 2022).

E, para quem está procurando o próximo podcast para ouvir, recomendo o Projeto Querino, que promete repassar a história brasileira pelo ponto de vista afro-descendente, abordando questões como a relação íntima entre trabalho doméstico e escravidão.

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