Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Descrição de chapéu Filmes Festival de Veneza

'Blonde' é um déjà-vu constante entre Monroe e a masculinidade tóxica

Filme de Andrew Dominik segue onda de obras pretensamente intimistas feitas por homens sobre mulheres icônicas

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São Paulo

"Blonde" é o tipo de longa difícil de separar de tudo o que o cerca: o que já se leu sobre Marilyn Monroe, suas fotos icônicas, vídeos eternizados em nossa memória, as participações em filmes, os livros a seu respeito. Falar do filme de Andrew Dominik, simplesmente, é quase impossível.

O longa de quase três horas disponibilizado esta semana na Netflix parece continuar uma onda inaugurada por Pablo Larraín –de forma tímida com "Jackie" (2016) e definitivamente com "Spencer" (2021)– de filmes etéreos, ou pretensamente "intimistas", feitos por diretores homens sobre figuras femininas icônicas que tiveram vidas tumultuadas e trágicas.

Larraín destacou em Jackie Kennedy e Lady Diana, respectivamente, enquanto "Blonde" se ocupa do ícone americano de Monroe, nascida Norma Jeane. Curiosamente, os três filmes tiveram estreia no Festival de Veneza.

Ana de Armas em cena do filme "Blonde", de Andrew Dominik
Ana de Armas em cena do filme 'Blonde', de Andrew Dominik - Divulgação

"Blonde" parte do livro homônimo da americana Joyce Carol Oates para uma adaptação audiovisual que aposta num formalismo extremo. O resultado é uma colagem que oscila entre o minimalismo em preto e branco, um colorido numa paleta que lembra comerciais antigos e intervenções psicodélicas de luz e som. Assim como Larraín, Dominik faz uma leitura bastante livre da experiência de sua protagonista, que envolve alucinação e uma overdose de closes que exploram a beleza da atriz principal, Ana de Armas.

A atuação da intérprete nascida em Cuba talvez seja o único consenso sobre "Blonde": ela teria captado a alma de Marilyn, imitando com perfeição seus trejeitos, dicção e até a voz infantilizada que marcou sua curta vida. A semelhança não é apenas mérito da atriz: Dominik usou técnicas para aproximar a imagem da cubana do ícone americano, como filmar Armas com a câmera alta e usar lente de 50 mm, o que acentuava a relação entre as duas mulheres.

Outro aspecto que contribui para a sensação de reprodução a olho nu é a recomposição minuciosa que o filme faz de registros históricos de Monroe. O longa gera um efeito déjà-vu constante, ao reconstruir, com imagens em movimento, instantes que aprendemos a conhecer e consumir na forma estática dos registros fotográficos ou enquadradas de um certo ângulo no caso dos filmes.

O objetivo declarado de Dominik com o longa sempre foi o de recriar imagens icônicas: seu trabalho foi todo baseado em imagens, muito mais do que em relatos sobre Monroe.

Isso explica o efeito colagem gerado pelas mudanças constantes de cor e formato de "Blonde": se uma imagem de Monroe havia sido feita em quatro por três, eles usavam esse formato; se fosse preto e branco, era esse o registro que seria usado na cena.

Há algum uso dramático do formato da imagem, ainda que minoritário, como quando o preto e branco é usado em cenas nas quais Norma Jean está num estado de confusão mental, passando ao colorido quando ela está mais conscientemente presente na realidade.

Mas, para além de tudo isso, que história se conta? Em resumo, a de uma mulher que foi vítima da perversidade de muitos homens que passaram pela sua vida. Isso é crível? Sim. Norma Jean viveu numa época em que as mulheres estavam confinadas a existir num espaço muito delimitado pelos homens que regiam o mundo, frequentemente cercadas de uma atmosfera de masculinidade tóxica. Porém, isso torna o filme interessante? Não necessariamente.

Ao retratar Marilyn como uma vítima durante toda a vida, percebida e consumida como apenas um corpo de boneca vazia, "Blonde" parece repetir essa mesma violência.

Por que ignorar toda a força que também fez parte da vida de Norma Jeane? O fato de que ela montou a sua própria produtora, que se envolveu na luta contra o movimento anticomunista dos anos 1950, que lutou contra a segregação em favor de Ella Fitzgerald? Ou mesmo o seu interesse voraz por arte e literatura, seus estudos ou os escritos que foram objeto do livro póstumo "Fragmentos", lançado em 2012? Aliás, outro filme disponível na mesma plataforma que toca em muitos desses pontos é o recém-lançado "The Mystery of Marilyn Monroe: The Unheard Tapes" (2022), ou o mistério de Marilyn Monroe: fitas inéditas.

É válido que se questione a escolha de se representar um ícone feminino da estatura de Marilyn como uma vítima passiva sem agenciamento. Não se pode furtar, em 2022, a encarar as repercussões culturais dessa escolha artística e dramatúrgica. O que se esconde por trás dessa onda de filmes dirigidos por homens que tentam captar a alma feminina destacando apenas o seu sofrimento?

O romance homônimo de Joyce Carol Oates no qual "Blonde" se baseia tinha uma qualidade que o filme não replica. A voz da Norma Jean de Oates é ativa, mesmo que dentro de sua mente, durante os abusos e percalços que enfrenta. Uma passagem icônica do livro adaptada de forma sofrível no filme é o encontro em que faz sexo oral no presidente Kennedy. No monólogo interno de Marilyn, ela encontra justificativas para se submeter àquela violência, propondo para si mesma que aquele fosse simplesmente mais um papel a desempenhar.

A passagem é extremamente significativa, inclusive pelo que revela sobre a percepção daquela mulher sobre sua própria profissão de atriz. Mais do que isso, há nessa atitude uma dignidade que não afasta o abuso, mas atribui a Marilyn uma inteligência que tentava encontrar saídas para os labirintos nos quais sua fragilidade (e muito possivelmente vaidade) a metiam.

E esse alcance não existe na interpretação que Ana de Armas dá às palavras. Curiosamente, a mesma passagem do texto integra o documentário em "Joyce Carol Oates: A Body in the Service of Mind" (2022), ou Joyce Carol Oates, um corpo a serviço da mente, de Stig Björkman, exibido na última edição do festival É Tudo Verdade. Lido por Laura Dern, o trecho ganha uma conotação dramática e astuta que de alguma forma distancia Norma Jean da banalidade cruel da violência vivida pelo seu corpo.

A sensação que fica é que "Blonde", o filme, é uma combinação de duas premissas: usar Ana de Armas para uma reconstituição masturbatória de imagens icônicas e usar Marilyn para construir uma história de trauma e abuso, ignorando tudo o que não coube nessa premissa. E essa proposta não poderia ser mais distante da de um livro que tentou justamente criar a alma de uma mulher que foi explorada simplesmente pela beleza de sua fachada.

Reclama-se dos questionamentos femininos ao lugar de fala, mas vejam o que acontece quando um homem tenta falar de maternidade: um feto falante por computação gráfica. Como justificar a filmagem de um aborto do ponto de vista de uma vagina? E dar personalidade aos fetos que Norma Jean abortou ao longo da vida ou retratar sua gravidez não pelo crescimento de sua barriga, mas pela vida que ocupa seu útero? São escolhas que tomam contornos ainda mais complexos no contexto da reversão da legalidade do aborto nos Estados Unidos.

Diante de um longa frequentemente violento e indigesto, talvez o melhor a fazer seja ouvir as palavras do próprio diretor: "Esse é apenas um filme sobre a Marilyn Monroe. E ainda haverá muitos outros filmes sobre ela".

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