Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Helen Beltrame-Linné​

Filme sobre os Racionais MC's é oportunidade de educação para a elite

Ouvir sobre a viagem do 'inferno do Capão' é um estudo sobre a geografia da miséria e a relação da periferia com o centro

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No último domingo (20), Dia da Consciência Negra, assisti a "Racionais MC's - Das Ruas de São Paulo pro Mundo", que estreou na Netflix na semana passada. Dirigido por Juliana Vicente –cujo histórico com o grupo está nesse depoimento a Lia Hama–, o documentário faz muito mais do que contar a trajetória do coletivo paulistano.

Teria sido suficiente o rico acervo de imagens que ela reuniu e montou sob o ritmo pulsante da produção musical do grupo –mas ela não para aí. O material é entremeado por depoimentos lúcidos e inteligentes dos quatro integrantes da banda, deixando evidente que Mano Brown pode ter assumido o protagonismo, mas esteve sempre muito bem acompanhado por Ice Blue, Edi Rock e KL Jay.

Ice Blue, KL Jay, Mano Brown, Edi Rock
Ice Blue, KL Jay, Mano Brown, Edi Rock no documentário 'Racionais - Das Ruas de São Paulo pro Mundo', da Netflix - Divulgação/Netflix

Os Racionais foram um fenômeno da vida urbana paulistana que acumularam hits e escândalos desde a sua formação no final dos anos 1980: mortos em shows, uma apresentação na Virada Cultural que virou campo de batalha em 2007, confusões com policiais pelo Brasil afora.

Mais do que isso, o grupo marcou e registrou o seu tempo. "Fim de Semana no Parque" (1993), por exemplo, registrou o olhar apurado e reflexivo dos periféricos que queriam curtir o lazer no final de semana e se viam confrontados com ricos que "desperdiçam água". A histórica "Diário de um Detento" (1997) relatou o massacre do Carandiru do ponto de vista de um preso.

A subversão sempre foi um elemento inegável do grupo, desde sua origem como BB Boys ("bad black boys"). E ao longo de décadas o quarteto corajosamente denunciou a violência da periferia como resultado da miséria, da negligência do Estado e da brutalidade da polícia.

Ouvir sobre a viagem do "inferno do Capão Redondo" de Brown, onde só havia "lama e tiro", para o centro de São Paulo é um verdadeiro estudo etnográfico sobre a geografia da miséria e a relação da periferia com o centro. Uma realidade, aliás, também retratada no recente "Rota 66: A Polícia que Mata", disponível no Globoplay, que aproveito para recomendar.

Junta-se a isso a descrição da efervescente região central da rua São Bento do final da década de 1980, onde a banda nasceu (do encontro de uma dupla da zona sul com outra da zona norte da Grande São Paulo) e também berço do hip-hop e uma geração de artistas como Osgêmeos, por exemplo.

Brown diz que não tinha inteligência nos primeiros anos da banda, mas sua inquietude e a virada que impõe ao grupo nos anos 2000 deixa evidente que sempre houve capacidade intelectual de sobra. E um senso de humor apurado: "Problema com escola eu tenho mil, mil fita / Inacreditável, mas seu filho me imita / No meio de vocês ele é o mais esperto / Ginga e fala gíria; gíria não, dialeto / Seu filho quer ser preto, ah, que ironia". Não foi à toa que o álbum "Sobrevivendo no Inferno" (1997) virou livro e foi incluído na leitura obrigatória do vestibular da Unicamp.

Num estudo de 1993, Maria Rita Kehl escreveu sobre os Racionais "manos de boné, bermudas largas, moletons imensos, cabelo raspado e óculos escuros" que "não nos autorizam, não nos dão entrada. ‘Nós’ estamos do outro lado. Do lado dos que têm tudo o que eles não têm".

Talvez resida aí a grande potência desse documentário: uma oportunidade de ouro de chegar perto deles, esse outro que carrega em si a tensão de quem vive o "holocausto urbano", como bem resumiu o próprio grupo.

Tenho escrito aqui, e mesmo numa resenha literária recente sobre a necessidade de "mudar os olhos do branco que não compreendem as roupas exóticas, os bonés, as cores fortes", como escreveu Emicida, outro negro pensador.

Mas ao ver o documentário de Juliana Vicente tive uma epifania. Pois temos como mote que educação é essencial, significando sempre que precisamos educar os pobres, que são em sua esmagadora maioria pretos. E se fizéssemos diferente e educássemos a nós mesmos? Desculpem a sinceridade, mas são os brancos da elite econômica que precisam de educação.

Discordo do crítico que escreve na Ilustrada que um filme não é necessário. Acho "Racionais MC's" necessaríssimo – e quem se irritar com o neologismo pode ver a aula-filme "Nossa Pátria Está Onde Somos Amados" (2022), de Felipe Hirsch, sobre a língua como nova representação e reflexo de contextos socioculturais.

Mais sábio foi Tony Marlon, colunista do UOL, que escreveu que "faltava um documento que convidasse a sociedade brasileira a observar os Racionais e o movimento hip-hop numa perspectiva histórica —cultural, social e artística."

Faltava e agora está aqui, assim como Projeto Querino, podcast obrigatório de Tiago Rogero. E "Amarelo", de Emicida, que trabalha no registro da celebração, mas que dá uma aula de história mesmo assim. Pelo que ensina sobre a Semana de 22, o nascimento do samba e da música negra brasileira, pioneira na constatação de que a mulher negra e pobre sofre preconceito triplo (classe, gênero e raça). Por nos fazer ouvir Angela Davis quando faz a pergunta: "mas por que vocês precisam olhar para os Estados Unidos quando tem aqui Leila Gonzalez?"

O que precisamos, com urgência, é colocar "Racionais MC's - Das Ruas de São Paulo pro Mundo" no currículo obrigatório das escolas privadas do país. E nem estou falando aqui de letramento racial. A gente diz que "eles" precisam aprender português, mas nós é que precisamos aprender pretoguês, meus amigos.

Em tempo, queria fazer eco às constatações do ombudsman sobre a postura desta Folha desde a eleição de Lula. Que tristeza.

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