Helio Mattar

Diretor-presidente do Instituto Akatu, foi secretário de Desenvolvimento da Produção do Ministério da Indústria e Comércio Exterior (1999-2000).

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A sociedade é para todos, ou não é para ninguém

A pandemia desperta a necessidade de criarmos um futuro em que ninguém mais poderá ficar para trás

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A triste e inédita experiência da pandemia do coronavírus expõe a todos à enorme fragilidade da vida. Com a sensibilidade aguçada, neste momento extremo, torna-se mais fácil perceber uma verdade que, embora sempre presente, agora se mostra com mais clareza: o destino de cada um está ligado ao do outro, e todos precisamos de cuidados.

No entanto, cuidar de si próprio e do outro não é uma condição dada igualmente a todos. Por isso essa crise é vivida de forma tragicamente distinta, dependendo do grupo social a que se pertence.

A própria prática do distanciamento social, factível para quem pertence aos grupos mais privilegiados, é extremamente difícil para os que vivem em espaços restritos, inadequados para abrigar com dignidade famílias que agora deveriam permanecer isoladas do convívio social.

Os próprios cuidados com a higiene, cruciais neste momento, são inviáveis para os que não possuem condições mínimas de saneamento, como milhões de brasileiros. Como diz o médico Dráuzio Varella, que tem percorrido os rincões mais pobres do país, não se pode recomendar que lavem bem as mãos aos que vivem em casas onde não há nem uma pia.

Em condições precárias de vida, muito agravadas pela dificuldade em se obter uma renda mínima de subsistência, o cuidar do outro é, quase sempre, uma real impossibilidade. Ao contrário, tem sido frequentemente divulgado um aumento expressivo, quase explosivo, dos índices de violência contra mulheres e crianças. Uma patologia que se torna ainda mais grave quando a vida, que já era difícil, torna-se insuportável.

É mais fácil cuidar do outro quando temos as condições mínimas para isso. Para os que podem se dar ao luxo de trabalhar e estudar de casa, de fazer compras online, de manter contatos virtuais com amigos e parentes, de ter tudo isso, a vida se torna muito menos penosa no isolamento.

Em uma visão otimista, que prefiro adotar, podemos pensar que há um benefício nessa situação, pois se evidencia, com enorme clareza, a impossibilidade de seguirmos com a profunda desigualdade social, econômica e de oportunidades que tem sido a marca de nossos tempos, especialmente em nosso país historicamente injusto.

Essa realidade não poderá e não deverá se sustentar quando pudermos sair da pandemia (um momento que parece ficar mais distante a cada dia), e tivermos que enfrentar as consequências de uma muito provável depressão econômica.

Por outro lado, mesmo coexistindo com atos de egoísmo e oportunismo, o agravamento das condições das pessoas e das comunidades mais vulneráveis têm sensibilizado parcelas de maior poder econômico. Parte das grandes fortunas, de instituições e do mundo corporativo vêm colaborando com expressivas doações. E é preciso ressaltar as empresas que buscam cumprir sua responsabilidade social mantendo empregos, mesmo frente aos prejuízos causados pela paralisação momentânea da economia em inúmeros setores.

Mas a colaboração mais notável e expressiva, ainda que fragmentada, vem de uma grande parte da população que, com os meios disponíveis a cada um, tem demonstrado uma comovente solidariedade. O tecido social se mobiliza para amenizar a dor e a perda de renda das famílias mais pobres e mais afetadas pela pandemia, permitindo um mínimo de resiliência àqueles que tanto a necessitam.

Parece ter sido necessária uma situação extrema para que se percebesse que somos todos solidários e parte de um mesmo sólido. O que acontece a um, mais cedo ou mais tarde acontece a todos; a dor de um, logo mais será a dor de todos; a impossibilidade de vida de um, será a impossibilidade de vida de todos.

Vivemos essa solidariedade em que, apesar da pandemia não afetar ricos e pobres da mesma forma, ninguém poderá salvar a si próprio se a sociedade como um todo não tiver as condições mínimas de prevenção da doença. Basta lembrar que a população das periferias das metrópoles, mais expostas ao vírus, está em constante contato com os mais privilegiados, prestando serviços essenciais a se manter no isolamento. São os trabalhadores do transporte, do comércio de alimentos e das entregas de mercadorias.

Todos usam os mesmos meios para se deslocar, lado a lado, enquanto se movem para seus locais de trabalho ou de entrega. Essas mesmas pessoas têm contato no transporte público com os heróis que atuam no sistema de saúde —parte dos quais termina por se contaminar devido à falta de equipamentos de proteção adequada especialmente nos hospitais públicos. Todos usam os mesmos meios para se deslocar, lado a lado, em condições precárias de atendimento dos requisitos de distanciamento social.

A duras penas, vamos percebendo que estamos todos no mesmo barco e que a sociedade inviável para alguns, torna-se rapidamente inviável para todos.

Que esta pandemia sirva à percepção de que é preciso construir um futuro mais inclusivo, com melhor distribuição de riquezas, em que as condições básicas da vida humana, de educação, saúde, segurança, liberdade, sejam respeitadas e garantidas.

Trata-se de implementar uma nova arquitetura econômica e social, onde: (a) as empresas pratiquem um capitalismo voltado a todos os stakeholders, ou seja, não visem apenas os interesses de seus acionistas, mas de todas as partes envolvidas no processo de formação e distribuição de riquezas: fornecedores, clientes, comunidades, consumidores, meio ambiente e sociedade; (b) a sociedade civil se organize para pressionar empresas e governos para trabalharem na direção do interesse público geral; e (c) os governos coloquem recursos suficientes para garantir a todos os serviços essenciais à vida.

Talvez esta crise sem precedentes, pela qual a humanidade passa, seja a forma de despertar definitivamente a consciência de que dependemos uns dos outros e que precisamos criar um futuro em que ninguém mais, mas ninguém mesmo, poderá ficar para trás.

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