Hermano Vianna

Antropólogo, escreve no blog hermanovianna.wordpress.com.

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Hermano Vianna

Quero um mundo vacinado para ver o BaianaSystem desfilar no Carnaval

Grupo acaba de lançar sua reza forte para termos um gostinho da festa em tempos de pandemia

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Domingo de Carnaval sem Carnaval. Sou discípulo de Sêneca. Deveria ter seguido sua lição: todo dia imaginar o pior. Falhei. Como poderia imaginar domingo de Carnaval sem Carnaval? Algo medonho teria que ter acontecido no mundo. Pois aconteceu.

Pense só na quantidade de enterros diários, com distanciamento, realizados na pandemia. Fico espantado com gente que age com alguma normalidade nesta situação que parece trailer de “Melancolia”, de Lars von Trier.

Não sou sensível quanto Patti Smith. Mesmo assim não deixo de me identificar com a sua declaração em recente entrevista: “Sinto o desespero do mundo na boca do estômago”. Eu também. Somatizo. Sintomas diários. Da boca do estômago se irradia para todo o corpo que deveria estar na folia.

Ainda bem que o BaianaSystem acaba de lançar a sua reza forte para a doença não tomar conta de tudo. E para podermos ter gostinho do Carnaval fora desta época Covid (etc.). Gostinho não. Nada no BaianaSystem é pequeno. Só ver o entusiasmo das multidões ao redor de seu trio elétrico Navio Pirata para constatar seu gigantismo.

Também em cada show: celebração de intensidade espantosa, flertando com o caos violento. Rodas de ciranda-pogo se abrem com sublimação instantânea daquilo que poderia sair do controle. A massa bate palma e grita “é só amor”, em regime de autogestão. Caetano Veloso observou: é processo civilizatório, invenção de respeito/autorrespeito.

A qualidade, sempre crescente, da música do BaianaSystem orienta o Carnaval. É um dos principais focos de vitalidade/criatividade na cultura brasileira/mundial hoje. As lições do samba-reggae, do dub, do rap, do pagodão, da Nação Zumbi, das tradições variadas da guitarra baiana formam a base para experiências vitoriosas em termos artísticos e de popularidade.

Vertigem da pandemia: um dia o BaianaSystem estava nas ruas provocando as maiores aglomerações da história de seus carnavais; quase no dia seguinte seus componentes se isolaram na quarentena. Mesmo assim não pararam.

Houve o disco de dub, o lançamento do registro de show com Gilberto Gil. Começaram a gravar seu novo trabalho, cada músico em sua casa. O primeiro ato do resultado, intitulado “Navio Pirata”, foi lançado na sexta-feira de Carnaval, depois da pré-estreia da faixa “Reza Forte” no Dia de Iemanjá.

Preciso fazer comentários sobre outra faixa, “Nauzila”. É um exemplo concreto de algo que venho pregando há muito tempo, sem sucesso algum. Em 2003, publiquei aqui nesta Folha um manifesto pela descentralização do nosso meio ambiente informacional. Poderia escrever a mesma coisa agora.

Quando a internet surgiu, imaginei que haveria explosão de diversidade no consumo de pensamento/arte. Porém, continuamos presas de poucos canais de distribuição de novidades. Nossos contatos com o “resto do mundo” são sempre mediados pelas instituições de consagração —jornais, editoras, universidades, galerias etc.— do “Primeiro Mundo”.

“Nauliza” criou, na marra, contra essas tendências dominantes, contato direto de colaboração artística Bahia-Tanzânia. Navegando fora de mares informacionais óbvios, os componentes do BaianaSystem ficaram fascinados com o singeli, estilo musical equivalente local do funk carioca ou do kuduro de Luanda, produzido recentemente nos bairros pobres de Dar es Salaam. Certamente uma das mais radicais mutações dos usos da eletrônica pelas periferias globais, com os BPMs aceleradíssimos de um frevo saudavelmente insano.

O singeli tem conexões profundas com a variada história da música popular da Tanzânia, começando pelo taarab das orquestras de Zanzibar, que junta tradições árabes e africanas, bem presentes também no toque da guitarra baiana em “Nauzila”. Seus MCs fazem rap em suaíli, língua banta que sempre soube se apropriar de palavras de outros idiomas, muito árabe mas também o português. Tudo mistura-motor de mais misturas.

A colaboração digital de “Nauliza” misturou o BaianaSystem com o produtor Jay Mitta e o MC Makaveli, dois nomes centrais para o desenvolvimento do singeli. O lançamento é parceria das gravadoras Máquina de Louco e Nyege Nyege, também festival realizado no Uganda, que já se transformou em farol para a cultura de vanguarda da África Oriental, justamente por não copiar os grandes festivais “centrais”.

Sem variar, mais utopia desesperada: quero outro mundo vacinado/possível para ver o BaianaSystem desfilando pelas ruas de Dar es Salaam. Ou edição do Nyege Nyege em praia do Recôncavo Baiano. Dá para ir se adiantando: aproveite o Carnaval para aprender a dançar singeli via tutoriais online.

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