Hermano Vianna

Antropólogo, escreve no blog hermanovianna.wordpress.com.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Hermano Vianna

Senti puro desconcerto ao descobrir a literatura de Adília Lopes

Baixei o app de rádio portuguesa e imagino a escritora ouvindo as mesmas músicas, ao mesmo tempo que eu

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Há muito tempo, em um planeta onde era comum música ao vivo, sem live, estive em um show da banda The Lounge Lizards. Dez pessoas na plateia. O saxofonista John Lurie, antes da fama como ator em “Down by Law”, enumerou concertos em casas vazias, os melhores de vários gênios —algo assim como Thelonious Monk em Toronto em 1959... Sua conclusão, cortante: “Tenho certeza que nada parecido vai acontecer nesta noite”.

Essa lembrança surgiu depois que li um poema de Adília Lopes contendo a seguinte informação: “Nos anos da peste (1665, 1666), Newton deixou Cambridge e retirou-se para Woolsthorpe. [...] O célebre ‘binómio de Newton’ foi descoberto neste período, assim com a lei da gravitação universal”.

Adília Lopes lê seu livro 'Estar em Casa' - Reprodução

Pensei imediatamente: quantos Newtons estarão confinado(a)s por aí tendo suas melhores ideias? Porém, ao mesmo tempo, bateu um niilismo à la John Lurie: “Tenho certeza que nada parecido vai acontecer durante esta pandemia”.

Refletindo melhor, e seguindo Adília Lopes, que acredita tanto na “desentropia”: fico alegre com a aceleração científica provocada por RNAs mensageiros em vacinas produzidas em impressoras 3D genéticas programadas por filho(a)s de imigrantes turco(a)s na Alemanha. Nem sabia que tínhamos esses conhecimentos e essas máquinas.

Outra alegria: a pandemia me fez descobrir também a literatura de Adília Lopes, aparentemente bem mais simples, mas fruto de complexidade também espantosa.

Na verdade, minha descoberta de Adília Lopes aconteceu antes. Que saudade de livrarias físicas, onde exercito com o objeto livro o “amor táctil que votamos aos maços de cigarro”. Saudade especialmente da mesa de livros de poesia da Livraria da Travessa, onde há sempre novidades lusitanas.

Ali que tropecei desastrado —livros importados continuam muito caros— em “Bandolim”, de Adília Lopes. Preciso descrever melhor a qualidade do impulso da compra, para além do consumismo poético: ao folhear, o que senti foi puro desconcerto.

Quem tem coragem de publicar essas palavras? Por exemplo: “A inteligente gente é zombeteira. Sei isto desde que tenho consciência do mundo, desde os anos 60. Não vi outra coisa. Acho isto muito estúpido e de muito mau gosto. É uma moda. Uma má moda. Às vezes até são boas pessoas”. Isso ao lado de fotos de infância, no velocípede ou fantasiada para o Carnaval.

Talvez eu nunca tenha usado antes a palavra desconcerto. Não era citação de Camões, era entrada em território sentimental desconhecido.

Valter Hugo Mãe escreveu que gostar da autora de “Bandolim” é uma prova de maturidade. Não sei se concordo. Para mim, depois do desconcerto vem a inocência e o lugar-comum: todo o mundo passa a ser visto com olhos novos.

Só assim posso ficar abismado e maravilhado ao encarar, no livro “Manhã”: “De peras não gostava. Anos mais tarde, li Barthes. Barthes diz que gosta de peras e passei a gostar de peras. Barthes pode estar a mentir. O poeta é um fingidor. Mas acho que Barthes não está a mentir quando diz que gosta de peras”.

Reli tudo o que tenho de Adília Lopes durante a pandemia. Nem desconcerto sinto mais. Seu livro “Estar em Casa” inclui um poema sem título que só diz isto: “Ler, escrever, ouvir música, andar a pé, brincar”. Tenho também uma coletânea brasileira, “Aqui Estão Minhas Contas”, com o delicioso ensaio de Sofia de Sousa Silva. Tudo aqui misturado.

Li sobre “Dia e Dias”, livro com coisas escritas na pandemia. Não entendo: não podemos comprar ebooks portugueses ou franceses no Brasil. Efeitos perversos de política editorial digital.

Então só consegui ler o que está na internet: “É a quarentena do coronavírus. Não devo sair de casa. Tenho 60 anos, hipertensão e diabetes. Vivo sozinha. Não tenho net, não tenho televisão. Nem um candeeiro tenho para ler e escrever. Os trocos são poucos. Mas sou feliz. Tenho uma telefonia de pilhas que me deu uma amiga, pelas quatro da tarde oiço na Antena 2 os programas Pausa para dançar e Há cem anos. Gosto muito desses programas. Aprendo muito, oiço músicas bonitas”.

Claro: como no caso das peras de Barthes, baixei o app da RTP para poder escutar os programas. Eles me fazem boa companhia. Imagino Adília Lopes lá no além-mar ouvindo as mesmas músicas, ao mesmo tempo. Olho para fora e por instantes vejo a mesma coisa que Adília Lopes enxerga: “Cortinas verde pistaccio na janela em frente. Que alegria!”.

Há tristeza imensa atrás de tudo isso. Resta rezar com Adília Lopes: “Estamos a perder o mundo. É o Apocalipse. Resta-nos ir chuleando os trapinhos, os papelinhos, para que o mundo não se desfie todo de uma vez. Resta-nos desentropiar. Não estou a escrever um manifesto, estou a escrever uma oração”.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.