Hermano Vianna

Antropólogo, escreve no blog hermanovianna.wordpress.com.

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Hermano Vianna

Só quero saber do que pode dar certo aqui e agora

Pensava em Oswald de Andrade quando falei da minha utopia desesperada

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Um ano desde meu primeiro texto publicado nesta coluna. Nunca imaginei que, doze meses depois, o mundo continuaria empacado na mesma pandemia.

Os tempos continuam horrorosos. Tudo pior no Brasil. Quando, diante da terra arrasada, saberemos o que restou, que grupos sociais tiveram mais vítimas?

No meio desta tragédia, tenho plena consciência da responsabilidade de ter este espaço para conversar com tanta gente. Fiz opção arriscada, contrária ao sentimento de derrota que me atordoa: tentar escrever apenas a respeito de coisas boas que não têm a divulgação necessária, multiplicar benfeitorias e viralizar belezas por muito mais cantos e mentes.

Pensei que seria mais difícil. Não foi tanto: ainda tenho uma lista enorme de outras ideias e ações que me empolgam, que efetivamente melhoram —de várias maneiras— o mundo aqui e agora e que precisam ser mais conhecidas.

Uma constatação que deve sinalizar defeito meu: apontar saídas possíveis gera menos “likes”, talvez por essa postura não estabelecer links óbvios com as conversas dominantes nas redes sociais. Mesmo assim, sem tempo a perder, insisto desesperadamente no “só quero saber do que pode dar certo”.

Várias vezes falei aqui de minha utopia desesperada. Sempre estava pensando em Oswald de Andrade. Andei relendo “A Marcha das Utopias”. É minha maneira, sem respeito cronológico, de me preparar para celebrar o centenário da Semana de 1922.

Sim, sei de tudo que “os” (com poucas “as”) modernistas deixaram de fazer, ou fizeram errado, mas quero comemorar o pouco que deu certo, o que facilitou as vidas e lutas de “nós que viemos depois”. Para radicalizar o que de melhor foi proposto ali.

Kim Stanley Robinson é autor de “The Ministry for the Future”, obra fundamental para o entendimento da catástrofe climática onde nos metemos, ficção que deve ser lida como não ficção. Em entrevista, ele propôs uma distinção bem simples. O pensamento distópico funcionaria assim: “No meio da noite, você acorda com medo de que tudo esteja desmoronando, de que nada vai funcionar”. No outro polo: “Você tem esperanças e então planeja realizá-las agindo no presente: isso é pensamento utópico”.

Aprecio essa ligação da utopia com o agora, com a ação direta, imediata. Contudo, aprendi em “A Paixão Segundo G.H.”, de Clarice Lispector, a só querer saber do que pode dar certo no presente, sem necessidade de esperança: “Eu quero a atualidade, sem enfeitá-la com um futuro que a redima, nem com uma esperança - até agora o que a esperança queria de mim era apenas escamotear a atualidade”.

Mais enfaticamente: “Quero encontrar a redenção no hoje, no já, na realidade que está sendo, e não na promessa, quero encontrar a alegria neste instante”. O que me parece ser o contrário do conformismo.

Regina Casé repetiu essas palavras de Clarice Lispector no “Recital da Onça”, que ajudei a criar. Nosso querido Roberto Machado, depois que viu esse espetáculo teatral, veio nos dizer: “Mas aquilo é Nietzsche!” Sim, Nietzsche —e Oswald. Misturando ainda mais, o resumo de Bruno Latour: “A chave da saúde é a eternidade no presente”. A alegria é a prova dos nove. Agora.

A marcha das utopias é o movimento do arado “selvagem” que continua a fertilizar o mundo inteiro, contra marcos temporais, mesmo com tantos séculos de brutais massacres contra as populações indígenas das terras do “Novo Mundo”.

Obra em andamento: “Um incrível destroçamento das boas maneiras do ‘branco, adulto e civilizado''', uma “teimosa vocação de felicidade” contra “os atrasados e os aventureiros fantasmas do passado”.

O texto de Oswald tem passagens que, citadas hoje, podem desencadear processos de cancelamento sumário. Corro o risco indicando trechos que chegam a provocar dores de reconhecimento, apesar do uso de termos e exemplos claramente datados.

Oswald, profeta do presente, do elogio do matriarcado contra o patriarcado (“cuja maior façanha é a descoberta da bomba de hidrogênio”), da superioridade do ócio (contra o negócio), da “guerra contra o regime da desigualdade”, do mapeamento das armadilhas da lógica e, ao mesmo tempo, do amor pelo robô.

Tudo complexo, como deve ser —problemas e perigos a cada palavra: “A lógica que de Aristóteles a Descartes pusera de pé mais que o homo faber, o mundo faber. Ao contrário desse título que justificava todos os privilégios e com eles os racismos e os imperialismos, uma outra humanidade, colorida de azeviche ou pigmentada de ocre, vegetava nas regiões onde ainda era permitido andar nu e viver feliz”.

Mudança de ótica, do sentido da ação alegre, utopicamente desesperada: vegetar não é estar em coma; vegetar é florescer.

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