Hermano Vianna

Antropólogo, escreve no blog hermanovianna.wordpress.com.

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Hermano Vianna

Deveríamos copiar a 'cidadania de todos os lugares' de Lina Bo Bardi

Conexões interioranas revelam configuração anticonservadora resistente no Brasil

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Provavelmente, não houve tragédia na história da humanidade como a que estamos enfrentando em todos os continentes, simultaneamente. Pestes e guerras mundiais atingiram áreas geográficas mais restritas. O colapso da Idade do Bronze foi mediterrâneo.

Penso sempre nisso quando vejo essas fotos de sofrimento extremo em todos os países. Vamos demorar décadas para processar essa experiência radical, com sequelas físicas, psicológicas e socioculturais.

Um consolo —para milhares de pessoas— tem sido passear pelo Radio Garden, projeto que nos presenteia com a possibilidade de ouvir, em tempo real, a programação de rádios do mundo inteiro. Músicas/falas conectam a humanidade, não o vírus. Fico sempre alegre ao abrir sua página inicial —em site ou app— com aquela imagem do planeta cheia de pontinhos verdes. Cada um deles nos leva para uma estação transmitindo naquele momento.

O melhor: podemos navegar pelas ondas sonoras sem a importunação de algoritmos que tentam adivinhar nossos gostos e nossas bolhas. É muito mais fácil haver surpresas assim.

Outro dia fui parar no Suriname. Não tinha ideia: a maioria das rádios de lá toca música indiana, do raga clássico ao pop de Bollywood. Temos uma Índia em miniatura aqui do lado e nem aproveitamos…

Fico imaginando outros jardins, imitando o design do Radio Garden, com conteúdos diferentes. Uma possibilidade que me encanta: um planeta com pontinhos verdes sinalizando defesas de teses acontecendo em universidades de qualquer país, talvez com recursos para traduções para todas as línguas. Nunca saberíamos de antemão qual a área do conhecimento humano nos apresentaria suas últimas novidades. Aprendizagem aleatória de verdade.

Antes, as defesas de tese eram atividades presenciais. Não há mais volta: a pandemia provocou aceleração forçada na virtualização desse ritual que insistia no tradicionalismo.

Foi assim que consegui assistir à defesa de Daniel Mittmann, concluindo seu mestrado em história, cultura e identidade na Universidade Estadual de Ponta Grossa, no Paraná. Nem sei ao certo em que lugares da “vida real” o candidato, o pessoal da banca e o resto do público estavam. Esses “detalhes” não importam mais.

O que combina com minha amizade com Daniel Mittmann: nunca nos encontramos fisicamente, apesar de anos e anos de conversas. Ele também não facilita: é nômade mesmo, deleuziano roots-rizoma. Nasceu em São Leopoldo, RS. Fez filosofia na Unisinos. Virou professor na rede estadual, mas em São Paulo, circulando por várias cidades do interior, mais tempo em Piracicaba. Depois morou em Florianópolis, Buenos Aires, Pelotas, Curitiba, Ponta Grossa. Nomadismo também transdisciplinar: fez mestrado em educação na Unesp, com o tema pixação.

Título igualmente deleuziano da dissertação de Ponta Grossa: “Pensar um futebol-menor: o Clube Esportivo Aimoré como expressão da comunidade de São Leopoldo, RS”. Além de objeto de estudo, o Aimoré é sua grande paixão fixa. Ao lado do Macedusss & As Desajustados Bando, seu projeto artístico, com 25 anos de “deriva” pós-situacionista.

Estilo? Chamamé noise, noise antibarulho, punk colono, sentimentalismo capilé-colono, dub top de baixa qualidade/protesto —e muito mais. Método: “shows em qualquer lugar, com qualquer pessoa que queira tocar, não músicas letras ensaio nada”. Visual: “ponha uma sacola na cabeça e seja Macedusss”. Identidade coletiva que na pandemia fez live, até com autógrafo virtual, intitulada “Macedusss Não Faz Live”.

Trabalhos lançados por gravadoras de Viamão, Santa Maria e interior da Bahia. Conexões interioranas também internacionais: agora especialmente —mesmo via Google Street View— com Oberá, cidade argentina da Tríplice Fronteira, onde há o Kube Y Su Conjunto, projeto do artista sonoro Hector Borges.

Essas relações diretas inter-interiores, sem passar pelos ex-centros culturais, revelam uma configuração resistente de lado anticonservador do “longe demais das capitais” no Brasil.

Há vários outros sinais. O clipe com cosplayers do mundo inteiro recém-lançado pela Banda Repolho, de Chapecó, SC. A próxima temporada do Expresso Futuro, com Ronaldo Lemos, ancorada diretamente de Araguari, MG. “A Invenção dos Subúrbios”, livro de Daniel Francoy, em que aprendemos várias lições infraordinárias (vide Perec): “O Ribeirão Shopping, a cada ampliação, fica mais parecido com uma nave espacial”.

E assim por diante. Deveríamos copiar sempre Lina Bo Bardi: sua cidadania era “de todas as cidades, desde o Cariri, ao Triângulo Mineiro, às cidades do Interior e as da Fronteira”. Em resumo: deveríamos ser todo(a)s, lá bem dentro, Macedusss.

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