Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

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Itamar Vieira Junior
Descrição de chapéu Livros

Por que a literatura é minha profissão de fé

Palavras são elos entre nossa consciência e o entorno e codificam e decodificam o mundo à nossa volta

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Não recordo muito bem quando comecei a escrever. No traiçoeiro campo da memória, eu diria que foi quase ao mesmo tempo que comecei a ler.

A palavra exerceu sobre mim um fascínio quase místico, a mesma atração que conheci observando os astros ou a vida dos animais. Na tentativa de adentrar na alma do mundo, percebi que se abriam janelas para outras dimensões além das que eu vivia. As palavras encurtavam distâncias, nomeavam coisas, lugares e sentimentos, além de servirem de fôlego de vida para as personagens que passariam a fazer parte do meu mundo.

Instalações da Biblioteca São Paulo - Eduardo Knapp - 7.out.20/Folhapress

A etimologia do termo palavra vem do latim "parabola", que por sua vez vem do grego "parabole" e significa comparação. Essa definição tem relação com uma de suas funções: revelar os significados dos sentimentos, objetos e eventos, além da sua capacidade de capturar o espírito da vida. Tentar resumir e decifrar a essência das coisas em palavras teve em mim um efeito mágico, de profundo encantamento.

A partir daí, não poderia viver sem a sua companhia. Instituiu-se uma necessidade vital de não mais me separar dos livros, dos anúncios, de qualquer coisa que as contivesse. Das bulas de remédio às folhas de jornais úmidas que embrulhavam os ramos verdes de coentro. Das mensagens escritas nos muros do bairro aos palavrões que os vizinhos gritavam nas ruas e praças.

Mas a palavra não é apenas o que representa, é também o que se enuncia nos fragmentos que a compõem. Ela captura em si sentidos, histórias, a origem de tudo e de todos, a origem de um ser sobre o mundo.

Nas palavras, estão contidas as vidas das coisas e dos seres. Não se trata apenas de adornos que embelezam, como também se prestam ao engano ou ao deslumbramento de quem as encontra. São sobretudo elos entre a nossa consciência e o entorno, e é assim que codificam e decodificam o mundo à nossa volta, tornando possível vivê-lo na leitura e na escrita.

Talvez por isso a literatura seja a minha profissão de fé. Não há nada mais íntimo e poderoso que a leitura. Ler é colocar todo nosso corpo em movimento a serviço de um exame —os olhos percorrendo a superfície das palavras e o coração à procura da alma— da interpretação, da compreensão. São nossos olhos que capturam as palavras. É nosso cérebro que atribui um sentido, imagina as personagens, encadeia os eventos. Sofremos, sorrimos, sentimos raiva e compaixão. Ler ficção nos recorda que somos humanos.

A cada leitura, e enquanto deciframos tramas, histórias, ações e sentimentos humanos de cada narrativa, vivemos as vidas das personagens, sejam reais ou imaginárias. Uma história somente existe a partir do contato com o leitor. É um espaço mágico onde a paixão humana se revela por inteiro.

Imagino o que eu diria se encontrasse os escritores que me guiaram nos caminhos da leitura e da escrita. O que diria sobre suas obras que não me abandonam mesmo passado tanto tempo? Autor e leitor atingem seus objetivos quando conseguem iluminar o espaço que existe entre duas vidas por meio de uma história.

Ler é interpretar e experimentar venturas e desventuras da vida do diferente. É encontrar, estranhar ou se sentir familiar de situações e sentimentos. É exercitar a alteridade e comunicar o que há de mais profundo na experiência humana.

No mundo que celebra a morte da alteridade —a incapacidade de se conviver com o diferente—, a literatura nos devolve a capacidade de ser como o outro, mesmo que durante o tempo da leitura.

Ler é imaginar períodos da história que não vivemos, conhecer culturas e espaços distantes e, ainda assim, se sentir capaz de adentrar as subjetividades dos implicados em sua trama. Ler é percorrer o que parece radicalmente distante apenas para lembrar que somos mais semelhantes do que pensamos.

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