Jaime Spitzcovsky

Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.

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Jaime Spitzcovsky

Fantasma soviético em Hong Kong

Apesar da diferença entre os países, Pequim teme ter mesmo fim que Moscou

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Surpreendente em sua resiliência, ao se alastrar por três meses, a onda antigoverno em Hong Kong aumentou suas apostas, ao agitar um dos fantasmas mais assustadores para Pequim: o fim do regime liderado por Xi Jinping.

Manifestantes formaram, na sexta-feira (23), enorme corrente humana e copiaram ato realizado 30 anos atrás, nos países bálticos, num dos emblemas do processo responsável pela derrocada do Partido Comunista da URSS e pela desintegração do império criado a partir da revolução de 1917.

A 23 de agosto de 1989, em meio ao derretimento soviético, cerca de 2 milhões de pessoas se enfileiraram, numa muralha humana de 675 quilômetros, serpenteando pela Lituânia, Letônia e Estônia, então integrantes da URSS. Como principal demanda, a independência das nações bálticas.

 

Em Hong Kong, os organizadores da marcha enfatizaram não sustentar a bandeira do separatismo. Mas a mensagem, ao reivindicar o modelo de um momento histórico e formar cordão com 60 quilômetros e cerca de 200 mil pessoas, certamente desafia Pequim, devido ao inevitável paralelo entre os cenários báltico e honconguês.

A URSS de 1991, ano da desintegração, e a China de 2019 guardam diferenças abissais, mas é possível traçar o paralelo temido por Pequim. 

No cenário soviético, houve a conjugação de uma profunda crise econômica, sintoma de um sistema moribundo, com a lufada separatista impulsionada por liberdades trazidas pela glasnost. A abertura política de Mikhail Gorbatchov permitiu ao vírus nacionalista se espalhar por um império multiétnico, construído ao longo de séculos de czarismo e de bolchevismo.

Na contramão do gorbatchovismo, o Partido Comunista chinês rejeitou abertura política e abraçou mudanças econômicas. Injetou, a partir de 1978, doses cavalares de economia de mercado, gerou intenso crescimento, mas mantém controles políticos férreos, embora na ex-colônia britânica de Hong Kong, fruto de acordo com Londres, se verifique grau importante de liberdades democráticas.

Atualmente, o temor maior de Pequim não advém de separatismos (embora haja regiões com tais movimentos, como Tibete e Xinjiang), mas de reivindicações de classes médias emergentes, empenhadas em questionar desigualdades sociais, em demandar combate à corrupção ou em ampliar liberdades individuais.

A camaradas do partido, Xi Jinping proferiu discursos sobre a necessidade do estudo, apesar das diferenças, do fracasso soviético, a fim de prolongar a existência do regime atual. Organizadores da marcha em Hong Kong, sabedores dos espectros a rondar Zhongnanhai, sede do governo em Pequim, certamente optaram por agitar símbolos preocupantes para o PC chinês.

O calendário adiciona mais um elemento complicador à equação. A 1° de outubro, Pequim vai comemorar os setenta anos da revolução comunista. Festejos e paradas militares formam roteiro arquitetado para projetar a imagem de um regime responsável por recolocar o país na condição de potência global.

 

O governo chinês, de olho na agenda, pensaria duas vezes antes de uma intervenção militar em Hong Kong, receosa de estragar os festejos e de também manchar a imagem internacional de um país empenhado em se mostrar cada vez mais moderno. 

Manifestantes na ex-colônia britânica, sabedores dos freios impostos pelo calendário e pelos objetivos estratégicos do regime, ampliam desafios a Pequim, por exemplo, ao recorrer a memórias do fim da União Soviética. 

A intensificação do enfrentamento certamente trará consequências nefastas para Hong Kong e para a China, com inevitáveis consequências globais. Melhor, portanto, o caminho do diálogo e da negociação.

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