Jaime Spitzcovsky

Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.

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Putin, vacinas e a Casa Comum Europeia

Kremlin oferece cooperação vacinal a europeus e resgata conceito geopolítico da perestroika

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Enquanto, na quinta-feira (1º), o cáustico chanceler Serguei Lavrov enxergava as relações Washington-Moscou no “fundo do poço”, seu chefe, Vladimir Putin, calculava os dividendos políticos da videoconferência ocorrida dois dias antes, com Angela Merkel e Emmanuel Macron. Movimentos do Kremlin resgatavam o conceito diplomático da Casa Comum Europeia, fruto da era gorbatchovista.

O presidente Joe Biden, no início de governo, disparou retórica pesada contra o regime putinista e colocou as relações bilaterais no modo tensão, a repetir pressão exercida sobre o Kremlin, em particular, pela dupla Barack Obama e Hillary Clinton. Reina nos EUA pós-Guerra Fria, praticamente de forma consensual entre democratas e republicanos, a visão da Rússia muito mais como ameaça do que como eventual parceiro.

Entre aliados europeus de Washington, a percepção é mais matizada. Sobram desconfianças históricas e geopolíticas, mas persistem importantes interesses econômicos. A Rússia, por exemplo, desponta como fundamental fornecedor de gás natural para aquecer lares e movimentar indústrias em países como a Alemanha.

O presidente russo, Vladimir Putin, participa de conferência em vídeo sobre a vacina russa, em Moscou - Sputnik -22.mar.2021/Alexei Druzhinin/Kremlin via Reuters

Na videoconferência, as nuances saltaram aos olhos. Putin, Merkel e Macron conversaram sobre cooperação na área vacinal e a intenção de produzir a Sputnik V na União Europeia. Houve também temas de enfrentamento, como a prisão do líder oposicionista Alexei Navalni, as guerras na Ucrânia, Síria e Líbia, além do acordo nuclear de potências globais com o Irã.

Olhando das torres do Kremlin, os desdobramentos da semana lembraram momentos diplomáticos dos anos 1980, quando o líder soviético Mikhail Gorbatchov tentava administrar o desmonte inevitável do império criado por Vladimir Lênin a partir de 1917. E um conceito-chave da perestroika desenhava a Casa Comum Europeia.

A 6 de julho de 1989, Gorbatchov escolheu, para um discurso histórico, a cidade francesa de Estrasburgo, próxima à fronteira alemã. “A filosofia do conceito da Casa Comum Europeia rejeita a probabilidade de um conflito armado ou a possibilidade do uso da força ou da ameaça da força”, discursou o dirigente reformista. “Não se trata apenas de um jogo de palavras, mas da lógica do desenvolvimento europeu impulsionado pela própria vida.”

Derretia o mundo bipolar da Guerra Fria, e a Europa se preparava para o fim iminente da divisão continental entre os blocos ocidental e soviético. Em quatro meses, desabaria o Muro de Berlim, símbolo máximo daquele período histórico.

A competição diplomática, portanto, tratava de construir o novo cenário. Gorbatchov apostava na arquitetura da Casa Comum Europeia para manter influência e laços com vizinhos a oeste da fronteira russa.

Mais fortes no embate geopolítico, os EUA do presidente George Bush sustentavam o conceito de uma “Europa unida e livre”, obviamente sob o guarda-chuva da influência norte-americana. Prevaleceu, devido à uma correlação de forças altamente favorável, a visão da Casa Branca.

Nos anos seguintes, a União Europeia e a Otan, aliança militar liderada pela Casa Branca, expandiram domínios na porção oriental do continente, abarcaram países antes regidos por ditaduras soviéticas, como Polônia, Lituânia e Romênia, e se aproximaram e encostaram em fronteiras da Rússia.

Na disputa continental, como em outros rincões do planeta no pós-Guerra Fria, Washington impôs pesada derrota geopolítica a Moscou. Agora, Putin vislumbra a possibilidade de, com diplomacia das vacinas, recuperar espaço em países europeus, num resgate de conceitos dos tempos de Gorbatchov.

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