João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu

Gelo no coração

Quem tem ambições literárias deve ser de esquerda (em público) e de direita (na obra)

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Ilustração
Angelo Abu/Folhapress

Não dou conselhos. Exceto quando me pedem. Aí, depois de cobrar meu salário, digo sempre o mesmo a uma audiência mais jovem: quem tem ambições literárias deve ser de esquerda (publicamente) e de direita (literariamente).

Em público, persiste ainda a ideia bizarra de que a esquerda tem um "pedigree" cultural mais elevado. A história do modernismo desmente essa fantasia. Mas a fantasia sobrevive —e, acredite, é mais confortável fazer carreira sem correr maratonas. Relaxe, seja de esquerda, tudo fica mais fácil.

Literariamente falando, ninguém escreve grandes obras com "bons sentimentos". Muito menos com uma visão otimista da condição humana. Nesse quesito, faço minhas as palavras de Graham Greene: um grande autor tem sempre "uma farpa de gelo no coração".

O próprio Greene ilustrava essa máxima como grande escritor de direita que era (apesar de se dizer de esquerda, claro). Lembrei-me de tudo isso quando lia o suntuoso ensaio de Alfonso Berardinelli, "Direita e Esquerda na Literatura", publicado pela Editora Âyiné.

Berardinelli, professor da Universidade de Veneza, começa por recusar dois clichês sobre o assunto. Primeiro, que a literatura possui um grau de pureza intocado pelas discussões ideológicas. Segundo, que os escritores são uma raça à parte, incapazes de "legislar" para a humanidade.

Concordo com o autor: se entendemos a política no seu sentido mais amplo —uma visão do indivíduo e da sociedade como eles são e como gostaríamos que eles fossem—, tudo é política.

E esse entendimento tornou-se central entre 1700 e 1900, ou seja, com o Iluminismo continental e seus herdeiros. A literatura não se limitava a produzir belas formas. Era também o palco onde o passado e o futuro, a autoridade e a razão, o arcaísmo e o progresso se enfrentavam com violência singular.

Para Berardinelli, a Revolução Francesa só aprofundou esse cisma, ao transformar a política na "grande obsessão ocidental". Depois de 1789, a literatura foi permanentemente contaminada pelo vírus revolucionário (ou contrarrevolucionário) —e o escritor, mesmo o mais eremita, foi "arrastado" pelo caudal ideológico.

O historicismo foi uma dessas forças que sequestraram o ofício dos literatos, entendendo-se por "historicismo" toda a teoria que procura reconstituir e antecipar o sentido da história humana. Muitos marcharam pelo partido do progresso, como se fossem soldados de uma guerra heroica.

Mas os autores que hoje lemos pela sua importância literária são sobretudo aqueles que questionaram esse progresso inexorável. Nomes como Leopardi, Baudelaire, Flaubert ou Dostoiévski.

E não deixa de ser irônico que o repúdio do progressismo ideológico tenha implicado novos e modernos meios de expressão. Os revolucionários da forma eram os antirrevolucionários por definição.

O mesmo no século 20. O historicismo transmutou-se na causa marxista-leninista. Mas os escritores que sobreviveram ao tempo não foram aqueles que marcharam ao som de Moscou. São aqueles que frontalmente se opuseram à "nova fé soviética" (Orwell, Camus, Koestler) —ou lhe viraram as costas (Proust, Joyce, Kafka). Existe alguma lição nas lições do passado?

Alfonso Berardinelli acredita que sim, retomando o "gelo" de que falava Graham Greene (literalmente).

Em 1912, o Titanic naufragou ao colidir com o iceberg. Mas, em sentido metafórico, todos viajamos no Titanic, diz ele. Porque todos vivemos iludidos pela grandeza e perenidade da nossa civilização; e cegos para a mera possibilidade de um iceberg terminar com a festa.

Os candidatos a escritores que aspiram a algo mais do que a mera "poeira da glória" não são aqueles que embarcam euforicamente na última moda ideológica. Ou, pior ainda, que se submetem a ela com as certezas dos grandes fanáticos.

Pelo contrário: são aqueles que questionam todas as causas triunfantes, possuindo aquilo que Henry James designava como "imaginação do desastre".

Ou, para usar as palavras do próprio Berardinelli, "não é aconselhável cultivar a ilusão de que o mar da realidade, no qual navegamos, esteja sob controle".

Essa atitude cética e irremediavelmente trágica não produz best-sellers. Mas um dia, quem sabe, talvez produza algo mais raro: uma grande obra.

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