João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Para Steiner, um homem pode ler Goethe e, no dia seguinte, em Auschwitz, destruir seres humanos

As meditações do escritor são uma faca cravada na garganta dos otimistas culturais

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Será que George Steiner era “um completo charlatão”? O jornal Daily Telegraph dedicou um obituário ao escritor, que morreu no dia 3 de fevereiro. É um texto jocoso, cruel, displicente. E, a certa altura, o jornalista cita um acadêmico judeu (sem o identificar) que classificou Steiner nesses termos.

O acadêmico judeu, para que conste, era Isaiah Berlin, um pensador importante que, “malgré tout”, sempre teve alguns probleminhas de caráter.

Não sei se Steiner foi “um completo charlatão” em assuntos que não domino. Mas se Isaiah Berlin formulou questões de natureza política que entretanto assumi como minhas (“por que motivo a utopia não funciona?”; “a liberdade deve ter sempre prioridade sobre os demais valores?”; “em que sentido o pluralismo se distingue do relativismo?”), o mesmo posso afirmar sobre George Steiner.

Retrato
Angelo Abu/Folhapress

Para ser mais preciso, existem duas questões que, depois dele, passaram a pairar sobre a minha cabeça agitada.

A primeira é conhecida: será que a alta cultura é uma barreira contra a barbárie? 

A tradição racionalista do Ocidente afirma que sim: conhecimento é virtude. O que significa que o mal provém da ignorância.

George Steiner nunca aceitou esse otimismo socrático-platônico. Como repetidamente afirmou, um homem pode ler Goethe ou saborear trechos de Schubert —e, no dia seguinte, em Auschwitz, destruir seres humanos sem o mínimo abalo da consciência.

Pior ainda: como explicar que as instituições tradicionais nas quais repousa a alta cultura —as universidades, as artes, as editoras— tenham sido igualmente incapazes de evitar as catástrofes do século 20? Como explicar que elas tenham marchado voluntariamente com os carrascos?

George Steiner nunca nos deu uma resposta satisfatória para essas perplexidades. Mais: em doloroso paradoxo, Steiner era capaz de depositar toda a sua fé e esperança nas virtudes da alta cultura ao mesmo tempo que admitia as possibilidades de desumanização que a alta cultura encerra.

Em teoria, é importante ler Tolstói ou Dostoiévski. Mas até que ponto o contato com formas superiores de existência não nos torna imunes às formas mais banais de realidade ou sofrimento?

Como escreveu Steiner em “No Castelo do Barba Azul”, a loucura e a morte podem ser preferíveis ao tédio da vida burguesa. Raskólnikov, o personagem central de “Crime e Castigo”, escreve um ensaio sobre Napoleão —e, a seguir, “sai para matar a velha”.

As meditações humanistas (e anti-humanistas) de Steiner são uma faca cravada na garganta dos otimistas culturais. Mas existe uma faca maior: os judeus. Eles são a faca cravada na garganta da humanidade. 

Na versão tradicional, o antissemitismo ocidental, pelo menos até inícios do século 20 e envenenado pela pseudociência rácica, sempre bebeu na fonte bíblica.

Os judeus eram os assassinos de Deus, na figura do Seu filho; as perseguições e os “pogroms” antijudaicos partiam desse “crime” primordial.

Steiner discordava. O verdadeiro “crime” dos judeus não foi terem matado Deus; foi terem-no criado. Como é possível criar um Deus onipotente, onipresente, vigilante, exigente, castigador, quando os homens apenas desejam “voltar ao estábulo” para se espojarem “no seu politeísmo pagão, orgânico e permissivo”?

Quando Hitler afirmava que a consciência é uma invenção judaica, ele sabia do que falava. E falava com ódio, muito ódio, contra aqueles que tinham cometido semelhante afronta.

O ódio aos judeus, em Steiner, começa por ser um cansaço com os judeus (“judenmüde”), um cansaço com as expectativas elevadas que repousam sobre matéria tão animalesca. Entre Nietzsche (“torna-te aquilo que és”) e Deus (“torna-te em algo melhor do que aquilo que és”), o bárbaro não hesita.

Um completo charlatão? Direi apenas isso: se Steiner é um charlatão, Isaiah Berlin também é. Porque, ironicamente, o melhor desses dois pensadores judeus é bastante semelhante: um retrato contraditório, complexo, agônico da natureza humana.

Mas também um convite para sermos decentes —e, apesar de tudo, para cultivarmos a esperança melancólica dos céticos.

P.S.: Uma das melhores introduções ao pensamento de Steiner encontra-se no livro “George Steiner: À Luz de Si Mesmo” (Perspectiva), no qual é entrevistado por Ramin Jahanbegloo, que tem outro grande livro de entrevistas. Com Isaiah Berlin.

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