João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Quando site pornô ensina sexo seguro, apocalipse é questão de tempo

Nossa resiliência foi atrofiada por décadas de vulnerabilidade e infantilismo

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Tempos de quarentena são bons para pôr as leituras em dia. Ou os filmes que foram ficando para dias melhores, que são agora os piores.

Li recentemente “Viagem ao Redor do Meu Quarto”, do francês Xavier de Maistre (1763–1852), irmão do famoso contrarrevolucionário Joseph de Maistre. Aconselho. Foi minha primeira vez, mas tenciono regressar: em prisão domiciliária, Xavier mostra que “viajar” não é uma questão física, mas espiritual. E que o nosso próprio quarto pode ser tão exótico como o mais exótico dos destinos. Um bom conselho do século 18 que se aplica ao século 21.

Mas minha surpresa maior aconteceu com “1917”, o badalado filme de Sam Mendes que perdi nas salas. Não perdi muito: a parte técnica do filme, celebrada pelos críticos, é para mim a parte menos interessante da obra.

Mais: existem momentos na trama em que o filme se aproxima perigosamente de um videogame. Não gosto de videogames.

O interesse do filme é filosófico e a primeira imagem é soberba: estão dois soldados, tentando dormitar sob a copa de uma árvore, até que chega um terceiro soldado para acordá-los.

É puro Livro de Jó: “Nunca estive descansado, nem sosseguei, nem repousei, mas veio sobre mim a perturbação”. E que perturbação é essa?

Uma missão de altíssimo risco: cruzar o território inimigo e levar uma mensagem que salvará 1.600 soldados britânicos do massacre certo.

Eles vão. O que se passa a seguir não será descrito por mim, mas existe uma palavra antiga que explica tudo: resiliência. Não, não significa apenas coragem perante a adversidade. Significa algo mais: continuar em frente, sem sacrificar valores essenciais, quando tudo conspira para a fuga e para a covardia.

Não conto o fim, que curiosamente repete o princípio. Mas quando assistia a “1917” não deixei de chorar, metaforicamente falando, pelo abismo que nos separa desta gente. Se, hoje, um de nós fosse confrontado com missão igual, o mais provável era telefonarmos imediatamente ao terapeuta. Ou processarmos em tribunal o nosso superior hierárquico por assédio moral.

Atenção: não é uma crítica. Eu não me excluo do rebanho patético e amedrontado em que nos tornamos. Como explica o sociólogo húngaro Frank Furedi em incontáveis livros e artigos, a "cultura do medo” (e da vitimização) tomou conta das sociedades ocidentais nas últimas décadas.

Temos medo de tudo: comidas, bebidas, cigarros, pedófilos imaginários. Até do sexo temos medo, razão pela qual o site Pornhub decidiu produzir um filme para instruir as pessoas sobre a forma mais segura de transar em tempo de coronavírus. Posso estar exagerando, claro. Mas quando um site pornográfico dá aulas de segurança sexual, o apocalipse é uma questão de tempo.

homem põe máscara em mulher
Cena de vídeo do site Pornhub em que personagens usam máscaras de proteção facial - Reprodução

E quem fala do apocalipse, fala do voluntarismo com que as populações dão cada vez mais poder aos governos para limitarem as suas vidas e as suas liberdades. Sim, mil vezes sim: distância social e etiqueta sanitária são aconselháveis. E, em certos momentos, não há alternativa ao confinamento, caso contrário o sistema de saúde colapsa (como na Espanha ou na Itália).

Mas, parafraseando o velho JFK, não devemos perguntar o que o governo pode fazer por nós; devemos, antes, perguntar o que podemos nós fazer uns pelos outros.

Não somos crianças. Não somos dementes. Munidos com informação essencial sobre o novo coronavírus, não precisamos que sejam os governos a determinar os mais ínfimos passos do nosso cotidiano. Onde está o músculo da nossa resiliência?

Atrofiado, talvez, por décadas e décadas de vulnerabilidade e infantilismo.

Cuidado, gente: sem exercitar esse músculo, estaremos sempre à mercê de oportunistas e tiranos.

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