João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu

Não há livros imorais, ao contrário do que direita e esquerda dizem

Oscar Wilde nos provou, anos atrás, que apenas existem livros bem ou mal escritos; mas ainda vivemos um vitorianismo encapotado

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Mudam-se os tempos, não se mudam as vontades —se fosse hoje, Oscar Wilde não teria a mínima hipótese. Sim, não seria condenado por "indecência grosseira", ou seja, atos homossexuais. Mas a resistência em submeter a sua arte aos ditames da moralidade seria também o seu cadafalso.

Digo isso porque li, pela primeira vez, a transcrição do (primeiro) julgamento que envolveu Oscar Wilde no livro "A Intransigente Defesa da Arte" (edição portuguesa pela Guerra & Paz). Foi em 1895 —o marquês de Queensberry acusava Oscar Wilde de manter um relacionamento proibido com Arthur Douglas, filho do marquês.

O escritor Oscar Wilde - Reprodução

Para limpar o seu nome, Wilde processa o marquês —e é na qualidade de queixoso que se senta no tribunal. A defesa é implacável e escolhe como estratégia usar a obra de Wilde como prova da sua imoralidade, sobretudo "O Retrato de Dorian Gray", publicado anos antes.

Oscar Wilde recusa essa identificação —e defende, com inteligência e humor supremos, a radical autonomia da arte. Ou, nas palavras do escritor, não existem livros imorais. Existem apenas livros bem escritos ou mal escritos. De igual forma, não é função do artista "fazer o bem". A sua função é distinta —criar beleza.

Nesse processo, ele pode usar a virtude e o vício como elementos criativos. Mas a relação que mantém com tais conceitos é a mesma que o pintor estabelece com as cores —uma relação instrumental, que tem como propósito criar uma obra de arte, não um sermão aos incréus.

Como afirmara Wilde em artigo de jornal, lido durante o julgamento como se fosse prova incriminatória, Shakespeare teve o mesmo prazer em criar o perverso Iago e a inocente Imogênia. Porque somos nós, e apenas nós, seus leitores, que podemos olhar para ambos com as lentes do repúdio ou do louvor morais.

As respostas de Wilde, que parecem diálogos de uma das suas peças, não o salvaram. Depois de retirar a queixa contra o marquês, por temer que a exposição do caso seria mais prejudicial para ele do que para Queensberry, o Estado inglês não podia ignorar o que fora dito nas audiências.

O escritor voltaria a tribunal, para se sentar no banco dos réus, e acabaria condenado a dois anos de prisão com trabalhos forçados por "indecência grosseira". Não é exato que a prisão de Wilde tenha acabado com a sua carreira ou o seu talento. Quem ainda escreveu "De Profundis" ou "A Balada de Reading Gaol" estava vivo, e bem vivo.

As palavras de Oscar Wilde não envelheceram uma ruga. Os moralistas também não. Hoje, podem ser encontrados à direita e à esquerda, tentando impor uma particular concepção moral e social ao mais indomável dos atos humanos.

A direita, marchando pelos "bons valores" da pátria, da religião, da família ou do Diabo, como se uma obra de arte tivesse de ser um relicário. A esquerda, recusando qualquer expressão artística que não se ajuste aos "bons valores" da justiça social, das pautas identitárias e da luta de classes, como se uma obra de arte tivesse de ser um panfleto da militância.

Duas atitudes gêmeas, e bem reacionárias, em seu vitorianismo encapotado. Que, mais de um século depois dos julgamentos de Oscar Wilde, falham o teste supremo. Não existem livros moralmente corretos ou incorretos; apenas livros bem escritos ou mal escritos.

Quando será que os filistinos vão entender?

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