João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

O povo do populista vale tanto como o proletariado do marxista: nada

Bolsonaro foi mais um cogumelo venenoso no bosque encantado do antiliberalismo

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Quando Jair Bolsonaro apareceu no Brasil, minha distância foi minha aliada: o populismo antiliberal de direita já se tinha espalhado pela Europa e pelos Estados Unidos. Por que motivo o Brasil haveria de ser uma exceção?

Sim, existiram razões internas –crise econômica, o fracasso moral do PT, o lava-jatismo— que são exclusivas do país. Mas Bolsonaro era mais um cogumelo venenoso no bosque encantado do antiliberalismo, essa velha tradição que tanto pode ser de esquerda como de direita.

Ilustração de um cardume de tubarões tendo em primeiro plano um grande tubarão com fisionomia semelhante à do ex-presidente golpista do Brasil que exala manchas de sangue enquanto nada.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 6.fev.23 - Angelo Abu

O objetivo é sempre o mesmo: corroer a democracia liberal e representativa, bem como as virtudes a ela associadas —o pluralismo, a laicidade, a tolerância e a simples experiência da individualidade.

Vários eruditos pensam que o antiliberalismo é fruto da Revolução Francesa e que o conservadorismo ultramontano de um Joseph de Maistre inaugurou essa linhagem.

Nada mais falso. O grande inimigo dos iliberais não são os jacobinos (a admiração de Maistre pela ferocidade de Robespierre era genuína); são os indivíduos, que emergiram com a passagem do mundo medieval para o mundo moderno e que se viram emancipados da tutela da família, da corporação ou da igreja.

Esse momento, que para uns foi visto como uma libertação histórica, foi encarado por outros como uma perda traumática.

Os iliberais (ou, como Michael Oakeshott lhes chama, os anti-indivíduos) permanecem conosco até hoje, tentando recriar esse mundo perdido com várias roupagens coletivistas: a sociedade sem classes; a comunidade do "solo e do sangue"; integralismos de várias ordens; e até os novos identitarismos. Em comum, repito, está o ódio ao indivíduo e à modernidade que o gerou.

Os cientistas políticos Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro, autores de "O Populismo Reacionário" (Contracorrente, 209 págs.), sabem disso. O livro é uma notável explicação do fenômeno Bolsonaro, juntando no título dois conceitos-chave.

Por um lado, o populismo do capitão apenas copia os populismos seus contemporâneos, apresentando o líder como o verdadeiro representante do povo contra elites predatórias e corruptas.

Pela mesma lógica, o líder não pode aceitar a existência de instituições intermédias entre ele e as massas, razão pela qual o Judiciário ou a mídia são alvos óbvios da ira populista.

Como é evidente, essa conceituação do "povo" como entidade homogênea e pura é uma espécie de marxismo do avesso: também os marxistas olhavam para o "proletariado" como um monólito no qual projetavam suas fantasias e aspirações.

Que esse "proletariado" nunca tenha existido, tal como não existe "o povo" dos populistas, é uma evidência para qualquer pessoa que não tenha sido sequestrada pelo fanatismo político.

Por outro lado, o bolsonarismo transporta o gene reacionário que é típico do antiliberalismo de direita. Esse gene funciona em duas etapas: primeiro, é preciso identificar a doença; depois, é obrigatório ministrar a cura radical.

A doença é a modernidade como um todo: o individualismo; a secularização da sociedade; o pluralismo político; o pensamento científico; e a democracia representativa, tida como incapaz de dar voz à "vontade geral".

A cura, sem surpresas, é a pré-modernidade como um todo: a defesa da comunidade nacional como dotada de uma alma ou de uma missão; a recristianização da sociedade até nos seus detalhes mais privados e pessoais; o antipluralismo militante (a política é uma guerra entre "amigos" e "inimigos", como diria Carl Schmitt); a adoração do pensamento mítico ou do irracionalismo anticientífico; e a defesa de um líder carismático e autoritário, capaz de estabelecer uma relação direta entre ele e as massas.

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Bolsonaro e Carla Zambelli na Marcha para Jesus - Bruno Santos - 9.jul.22/Folhapress

A esse caldo bem conhecido o bolsonarismo juntou a força das redes sociais (os instrumentos de propaganda do século 21) e cooptou, como é hábito na América Latina, os neoliberais descerebrados, que sabem muito de liberalismo econômico, mas pouco de liberalismo político.

Nada de novo debaixo do sol?

Não vou tão longe, até porque a obra de Lynch e Cassimiro apresenta o "populismo reacionário" dos últimos anos como uma originalidade no contexto dos vários conservadorismos brasileiros. Só isso já merecia um livro à parte.

Mas, para o que me interessa, é louvável que os autores integrem o bolsonarismo no "espírito do tempo", pensando o fenômeno para lá dos clichês e explicando o seu funcionamento interno.

Conhecer os sintomas do antiliberalismo, seja de direita, seja de esquerda, é a melhor forma de nos protegermos do contágio.

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