João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu Oscar

Ser um 'gentleman' não é questão estética, mas chamamento ético

No sorriso de compaixão de Bill Nighy, percebo o rosto por trás da máscara

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Chove em Londres e não há melhor refúgio do que uma livraria. A Hatchards de Piccadilly serve como nenhuma outra.

Entro, confiro as novidades, olho para as primeiras edições. Há um "Ravelstein", de Saul Bellow, assinado pelo próprio. O preço não assusta. O dia está ganho.

(Também há um "Indignation", de Philip Roth, igualmente autografado. Mas, como dizia a minha avó, não me estico porque a cama é curta.)

Então subo mais um piso e continuo a minha caça. Ao meu lado, participando no mesmo safari, está um cavalheiro de certa idade, alto, magro, cabelo branco, óculos escuros. Impecavelmente vestido. Olho. É o ator Bill Nighy.

O ator inglês Bill Nighy na 95ª edição do Oscar - Angela Weiss - 12.mar.23/AFP

Se houvesse uma foto no dicionário para ilustrar um "gentleman" ("cavalheiro", na defeituosa tradução portuguesa; "gentil homem" talvez fosse melhor), teria de ser Nighy. A pose, a reserva, o culto do "understatement".

Já o vi no cinema, já o vi no teatro. Fora da tela e dos palcos, ele continua dentro do personagem, o que significa que não há personagem. Mas será isso um elogio?

Ou existem perigos na ambição de ser um "gentleman"?

Depende do que entendemos pela palavra –e o próprio Bill Nighy refletiu sobre o assunto no filme "Living", pelo qual foi indicado ao Oscar de melhor ator esse ano.

No filme, Nighy é o sr. Williams, um burocrata da prefeitura de Londres, a quem uma das funcionárias trata clandestinamente por "sr. Zumbi".

"Baseada na pintura " O Filho do Homem, de René Magritte, em que um terno e um chapéu côco estão posicionados, como se vestissem um homem invisível. No lugar do rosto, onde na pintura original há uma maçã, encontra-se aqui um abacaxi."
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 17 de abril de 2023 - Angelo Abu

De fato. Williams é um morto-vivo. Todas as manhãs, de terno escuro e chapéu de coco, ele toma o trem para Waterloo Station. Parco em palavras, trabalha imperturbável na sua mesa.

Quando existem processos urgentes –como o pedido para a construção de um parque infantil–, ele redireciona o processo para os outros departamentos da prefeitura.

Sem surpresa, os outros departamentos fazem o mesmo –até tudo voltar ao ponto de partida.

O sr. Williams, sem levantar o sobrolho, coloca o processo no limbo e daí lava as suas mãos, como um Pilatos para quem o tempo e a urgência não existem. "Delay is life" ("atraso é vida"), como dizia o premiê Salisbury.

Tudo muda com um diagnóstico de câncer terminal. O tempo, e a urgência em vivê-lo, passa a contar de outra forma para aquele homem. Mas ele não sabe como agir. Não sabe como "viver um pouco" antes da despedida prematura.

No fim das contas, e como ele confessa no momento mais importante do filme, a sua ambição sempre foi ser um "gentleman".

E por "gentleman" entenda-se: cultivar a atitude certa, usar a indumentária certa. Usar a armadura certa, em suma, para se proteger da vida como ela é.

O sr. Williams lembra o Ivan Ilitch de Tolstói, aprisionado a uma existência "comme il faut".

Só a morte, a proximidade da morte, ensinará ao sr. Williams que existe um outro sentido para a palavra "gentleman": é ser capaz de fazer o que está certo, o que é decente, o que é humano, sobretudo quando todos os outros se mostram incapazes da tarefa, perdidos no mesmo labirinto de aparência e afetação.

Pela primeira vez na vida, o sr. Williams entende que ser um "gentleman" não é uma questão estética; é um chamamento ético, uma forma de liberdade interior. A felicidade, mesmo na morte, só é possível assim.

"Living" é uma adaptação da obra-prima de Akira Kurosawa, "Ikiru". Adaptação livre, diga-se, porque o mais importante é a impressão digital do escritor Kazuo Ishiguro, autor do roteiro.

Como acontece nos seus livros, em particular no magistral "The Remains of the Day", interessa a Ishiguro analisar a tirania de uma ideia –no caso, a ideia de "gentlemanship", entendida como mera formalidade elegante.

O perigo de tal ideia está no fato de ela secar "a santidade dos afetos do coração", como diria o poeta John Keats. É uma máscara que se usa sobre o rosto, atrofiando as suas emoções mais vitais, até o dia em que a máscara devora o rosto.

Perdido nesses pensamentos, me apercebo, envergonhado, que estou há demasiado tempo olhando fixamente para Bill Nighy.

Ele, talvez temendo pela minha sanidade, olha para mim e esboça um sorriso de compaixão. Sorrio de volta e confirmo: há um rosto por trás da máscara.

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