João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Para não falar merda sobre o mundo, falamos merda sobre nós próprios

Harry G. Frankfurt, autor de 'On Bullshit', foi profeta de uma sociedade que não sabe onde mora a verdade e a mentira

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Morreu Harry G. Frankfurt, aos 94, e os obituários foram samba de uma nota só. Um grande filósofo moral, importantíssimo nos debates acadêmicos sobre liberdade, determinismo e responsabilidade pessoal —mas sua fama aconteceu com um pequeno best-seller intitulado "On Bullshit", traduzido como "Sobre Falar Merda" no Brasil.

Concordo, até certo ponto. Sim, o público geral não leu suas obras mais eruditas. Mas é um erro olhar para "Sobre Falar Merda" como um trabalho menor.

Não é. É uma meditação rigorosa e profética sobre o excesso de "bullshit" em que estamos mergulhados.

O filósofo americano Harry G. Frankfurt
O filósofo americano Harry G. Frankfurt - Laura Pedrick/The New York Times

Para começar, a palavra "bullshit" não tem fácil tradução para português. A edição brasileira optou por "falar merda". É uma hipótese. "Besteira" seria outra, embora não tão forte. Em Portugal, "treta" ou "conversa da treta" poderia servir.

Seja como for, o que interessa é que em nenhum dos casos "bullshit" pode ser confundido com "mentira". Esse, aliás, é o primeiro objetivo de Frankfurt: separar as águas.

Um mentiroso, por incrível que pareça, é alguém que ainda mantém uma relação com a verdade. Para negá-la? Sem dúvida. Mas há pelo menos a consciência de que ela existe e um esforço intelectual para subvertê-la.

O mentiroso, explica Frankfurt, opera dentro de certos limites. Tal como o homem honesto. Ambos ocupam lados opostos do mesmo ringue: o ringue dos fatos e da realidade.

O "bullshitter" nem reconhece que existe tal ringue. Aquilo que distingue quem fala merda é uma total ausência de preocupação com a verdade dos fatos.

Nem preocupação, nem esforço: o "bullshitter" pretende apenas criar um efeito em quem o ouve, revelando-se aos outros sob uma certa luz fraudulenta.

No ensaio, Frankfurt cita um personagem de romance que, a páginas tantas, diz ao filho: "Nunca diga uma mentira quando puder falar merda."

Engraçado. Conheci um colega de faculdade que dizia algo de semelhante: "Quando não sei a verdade, deslumbro falando merda." Nos dois casos, a ideia é que falar merda é menos grave que mentir.

Intuitivamente, talvez: um picareta pode ser mais engraçado que um mentiroso. Não para Frankfurt. A consciência de que ainda existe a verdade, mesmo que a violemos, está um degrau acima na escada do caráter.

Mas o ensaio de Frankfurt não serve apenas para distinguir "falar merda" de "mentira". Ele é importante ao explicar por que motivo falar merda se tornou tão onipresente. Duas razões nos interpelam.

A primeira é que a ocasião faz o ladrão, como diria minha avó. A possibilidade de falar (e ouvir) merda é diretamente proporcional ao número de oportunidades para falar (e ouvir) essa merda.

Quando escreveu o ensaio, em 1986, ainda não havia internet. A disseminação da "bullshit", apesar de tudo, não era tão generosa. Quando publicou o texto em livro autônomo, em 2005, a inundação virtual estava apenas começando. Em 2023, falar merda se tornou língua franca.

Mas existe uma segunda razão bem mais profunda que a primeira para explicar a ubiquidade da merda: nosso ceticismo crescente. Quando não sabemos onde mora a verdade e a mentira, podemos optar por vários caminhos: o silêncio; o estudo; ou, então, a sinceridade.

Por sinceridade, entenda-se: elevar as nossas emoções a critério de verdade. Como não temos acesso à realidade objetiva dos fatos, optamos por um acesso à realidade subjetiva.

Só que o problema, como escreve Frankfurt, permanece. "Os fatos sobre nós mesmos não são peculiarmente sólidos e resistentes à dissolução cética", avisa o autor. "Nossas naturezas são, de fato, elusivamente insubstanciais —notoriamente menos estáveis e menos inerentes do que as naturezas de outras coisas".

Ironia: para evitarmos falar merda sobre o mundo, acabamos falando merda sobre nós próprios, como facilmente se comprova olhando ao redor.

Eu não disse que Harry G. Frankfurt era um profeta?

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