João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Milhões de pequenos ditadores querem que o mundo os espelhe

Quando os iluministas escoceses defenderam a liberdade de expressão, não a defenderam apenas para eles

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Foram rios de sangue por causa de uma obsessão: só existirá paz civil se todos subscreverem o mesmo dogma. A tolerância era uma fraqueza. A dissensão era uma ameaça. O conformismo era a salvação.

Foram pagãos contra cristãos. Cristãos contra heréticos. Católicos contra protestantes —e vice-versa. Monarcas absolutos contra livres-pensadores.

Imagem de homem de terno, de costas, aparece projetada em um espelho com moldura barroca. A imagem se repete ao lado invertida, de cabeça para baixo.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho - Angelo Abu

Até surgir essa coisa admirável, algures no século 18: a dúvida. Será que a melhor forma de garantir a paz passa por impor um único dogma ao pessoal?

Ou a paz só se consegue pela imposição de nenhum dogma?

O iluminismo escocês, com David Hume e Adam Smith no pelotão da frente, rechaçou velhos obscurantismos: se as pessoas tiverem menos "entusiasmo" pelas suas crenças, e se não tentarem impô-las aos outros, talvez exista uma chance real de não nos matarmos no processo.

Pelo menos, era assim a Escócia. Agora, leio no Daily Telegraph que uma nova lei destinada a combater o "discurso de ódio" levará o país de volta para a Idade Média.

Nota prévia: combater a difamação e a injúria por via judicial faz parte de qualquer Estado de Direito.

Nota prévia dois: a exortação ao crime contra minorias —étnicas, sexuais etc.— também deve conhecer a força da Justiça.

Mas a nova lei vai mais longe: sempre que houver discurso considerado odioso sobre raça, religião, idade, deficiência, orientação sexual ou identidade trans, a polícia deve intervir e investigar.

Duas originalidades, porém: não é necessário que esse discurso seja público; uma conversa privada, em casa, entre (falsos) amigos, pode acionar uma operação policial.

Outra variante: o governo escocês agradece a denúncia anônima para punir os criminosos. Se você suspeita que seu vizinho, seu tio ou seu avô não gosta de trans, budistas ou anões, pode ligar para os centros de "hate crime" que existem no país.

Fato: a lei permite que expressões de antipatia, repúdio ou humor contra a religião continuem a correr livres. Aliás, a nova lei enterra oficialmente o crime de blasfêmia na Escócia.

Mas, quando a antipatia, o repúdio ou o humor são exercidos contra os temas "woke" do momento, é legítimo supor que a polícia não vai rir dessas novas blasfêmias.

O caminho para a tirania começa assim: pela elevação do subjetivismo a arma de arremesso contra aqueles de que não gostamos. Esse subjetivismo é comum nos ditadores, que prendem, torturam e matam os seus inimigos, reais ou imaginários.

Hoje, o subjetivismo pode ser exercido por milhares, milhões de pequenos ditadores que, em nome dos seus "sentimentos", querem que o mundo seja um espelho fiel deles próprios.

O problema desse pensamento totalitário é que os "sentimentos" são, por definição, voláteis. O que para mim é um insulto, para outro é uma piada. O que para mim é uma piada, para outro é uma tortura psicológica irreparável.

O clima de litigância permanente que a nova lei inaugura, com metade do país querendo calar a outra metade, é a imagem mais próxima do inferno. Ou do manicômio.

Por outro lado, como resistir ao sistema escocês de denúncia anônima, que faz lembrar os bons velhos tempos da União Soviética?

Um país que promove a espionagem cívica e a delação virtuosa já não é uma democracia liberal; é um covil de ratazanas onde a franqueza e a confiança foram reduzidas a pó.

Finalmente, os autores da lei padecem de uma alucinação comum aos fanáticos do nosso tempo: a crença de que a história lhes pertence. E que serão eles, sempre e sempre, a definir os temas proibidos.

Mas a história é volúvel e nada garante que a lei que eles usam contra os "inimigos" do momento não será um dia usada contra eles. Exemplos não faltam —e os primeiros tempos do Terceiro Reich, quando os nazistas usaram e abusaram das leis da República de Weimar para calarem opositores políticos, são uma lição de aviso.

No caso da Escócia, basta mudar os termos da nova lei e, por exemplo, conceder uma proteção especial à religião —e tiro aberto para qualquer outro grupo ou sensibilidade. Chorar nesse futuro será chorar sobre leite derramado.

Quando os iluministas escoceses defenderam a liberdade de expressão, não a defenderam apenas para eles. Defenderam para todos, talvez por entenderem que uma arena neutra e um poder político limitado eram garantias intemporais (e impessoais) contra os caprichos da história.

Como foi possível termos regredido tanto?

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