Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

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Joel Pinheiro da Fonseca

O Brasil de Neymar e de Gilberto Gil

A paixão político-partidária está ditando a aprovação ou reprovação de dois gênios

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Nada me tira da cabeça que o jogo contra a Suíça teria sido mais fácil se Neymar estivesse em campo. O craque fez falta. E olha que teve gente comemorando quando ele se machucou.

Ninguém é obrigado a admirar ninguém, e Neymar —assim como tantas estrelas— tem sua cota de atos pouco admiráveis. Mas não foram eles o que realmente gerou a antipatia atual de parte da opinião pública, e sim seu apoio ostensivo a Bolsonaro. Assim como o que motivou os xingamentos baixos a Gilberto Gil, também no Qatar, foi seu apoio a Lula.

Não que os dois atos sejam moralmente equivalentes. Gritar insultos a um senhor de idade que passa é uma agressão consideravelmente mais baixa. O equivalente à comemoração pela ausência de Neymar da Copa seria se pessoas celebrassem Gil ter perdido alguma premiação internacional da música. Diferenças à parte, em ambos os casos o que vimos foi a paixão político-partidária ditando a aprovação ou reprovação de dois gênios de suas áreas.

Neymar cai durante o jogo com a Sérvia, no Qatar - Gabriela Biló - 24.nov.22/Folhapress

Em parte, falta a boa e velha capacidade de separar artista e obra. Podemos amar o cinema de Woody Allen e as pinturas de Michelangelo sem apoiar as escolhas que eles tomaram em suas vidas. Mas há mais do que isso.

Futebol e música não são qualquer esporte ou qualquer arte; são talvez as duas principais expressões da nossa identidade nacional. A forma como olhamos para nós mesmos e nos entendemos enquanto nação —aquilo que nos distingue dos outros e que ostentamos com orgulho— é em boa medida o produto da música popular e do futebol, do trabalho de gente como Gil e Neymar.

Esse Brasil com que cada um de nós sonha —o Brasil que poderia ser— é diariamente negado pela realidade do Brasil real —o que o Brasil, de fato, é. Mas na música e no futebol o Brasil sonhado existe de verdade. Criatividade, jogo de cintura, talento, ginga, prazer, alegria; e também trabalho, dedicação, busca da excelência. E, em ambos, a presença inescapável da diversidade e da miscigenação não apenas nos participantes mas também na forma do fazer, no idioma musical e esportivo em que conversam.

É verdade que tanto o futebol como a música podem —e são— politizados, não raro pelos próprios praticantes. Eles também são humanos. Quando Neymar joga e Gil compõe e canta, no entanto, essas expressões falam mais alto do que suas opiniões políticas. São expressões políticas de um outro nível, pois engendram a capacidade de unir milhões de pessoas diferentes em torno de uma concepção de bem comum.

Quando a política —isto é, a disputa por poder na sociedade— fala mais alto do que todas as demais considerações, somos levados inexoravelmente a reduzir todas as relações a amigo e inimigo, e agir de acordo. Nada mais tem valor intrínseco; tudo importa apenas na medida em que favorece ou atrapalha a supremacia de um grupo de pessoas sobre as demais. A vida perde o sentido: ouvir música ou torcer pela seleção perdem o sentido. E morre com eles a própria ideia de que podemos formar uma nação. Ver a nós mesmos como uma unidade, capaz de competir com outros países —e de, em alguma medida, ensiná-los— e de reconhecer valores em nós mesmos, torna-se impossível. A seleção? É bolsonarista (exceto o "santo" Richarlison). A MPB? Petista. É o Brasil reduzido ao calendário eleitoral. Resta a guerra.

Tudo isso para concluir: torça pela seleção, releve suas diferenças com o menino Ney e escute Gilberto Gil com prazer. Fará bem para você e para todos nós.

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