Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

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Joel Pinheiro da Fonseca

Não matem as redes para abolir as fake news

Empresas poderão simplesmente limitar debates sensíveis, tirando das mídias sociais seu grande mérito

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Imagine que alguém diga, numa rede social, que Lula deu um golpe; que urnas foram fraudadas. É o tipo de afirmação que, para muitos, atenta contra a democracia e deveria ser retirada o mais rápido possível. Mas e a afirmação de que Michel Temer também deu um golpe? Nem digo que as duas sejam equivalentes (não são), mas mostrar isso exige uma argumentação nada trivial. Outro exemplo: negacionismo de ciências médicas deve ser deletado, mas e negacionismo de ciência econômica? Como, aliás, diferenciar, no dia a dia, negacionismo e real discordância ou ceticismo?

Com o receio de serem responsabilizadas por conteúdos que "atentem contra a democracia" mesmo na ausência de qualquer decisão judicial, o mais provável é que as empresas evitem essas discussões abstratas e simplesmente limitem debates polêmicos sobre temas sensíveis, isto é, aqueles temas que mobilizem as paixões. Ao fazer isso, tirarão das redes o seu grande mérito: engajar a sociedade no debate público.

Transmissões nas redes sociais promovidas na rua na China - Jade Gao - 20.fev.23/AFP

Temos desde os anos 80 a democracia do voto, mas a oligarquia das opiniões. O mundo todo era assim. Agora temos também a democracia da opinião. Um número cada vez maior tem acesso aos meios para se expressar e ser ouvido. O Brasil era um país em que o discurso padrão era o da alienação política: "Tudo farinha do mesmo saco lá em Brasília, e não adianta tentar mudar". Esse discurso mudou desde 2013. As pessoas se interessam e querem mudar a sociedade.

As novas tecnologias dão a sensação (em alguma medida real) de que isso está ao alcance de nós. Engajar-se na disputa política passa a fazer sentido. Nessa mesma medida, a autoridade automática que era conferida às instituições de geração de conhecimento (jornais, institutos, órgãos oficiais etc) não basta mais para persuadir pessoas. Essa autoridade vinha da falta de alternativas, e as alternativas agora existem.

No velho sistema, especialistas produziam conhecimento, que por sua vez era simplificado e divulgado na imprensa e na educação. Quem tinha espaço para falar tinha passado por um longo preparo que justificava sua posição. Do lado da maioria que não tinha esse espaço, era enfatizada a importância cívica de se aprender alguns desses conteúdos. Infelizmente, quase ninguém busca informação apenas pelo dever cívico de se "manter informado" e ter um voto consciente. A maioria de nós só irá atrás de uma informação na medida em que precise dela —e vencer uma discussão ou aumentar sua reputação é um forte motivador.

Eu jamais conheceria os passos institucionais que levam à aprovação de uma vacina se não fosse a polêmica das vacinas de Covid. Idem para como se dá o monitoramento do desmatamento no país. Milhões de pessoas estão nesse mesmo barco. Aqui a lógica se inverte: todo mundo fala, mesmo sabendo muito pouco; e a divergência nas redes —que se dá em meio a erros, teimosia, gente honesta e desonesta—é ela própria o motor de aprendizado.

Na ausência de controles que impedem o acesso de todos à voz, caberá àqueles que produzem conhecimento e informação de qualidade —seja na pesquisa científica ou no jornalismo— entrar de forma mais decisiva no campo de embate retórico em que todos estão em pé de igualdade.

Em vez de bolar novos caminhos para proibir o erro, devemos equipar as pessoas para pensar por conta própria. Se essa possibilidade for limada por controles do discurso cada vez mais exigentes, as redes ficarão pasteurizadas, politicamente castradas, o público apático e a estrutura de poder vigente, portanto, mais solidificada.

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