Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

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Joel Pinheiro da Fonseca

A inteligência artificial não quer só seu emprego; quer substituir a realidade

O barateamento da fabricação de conteúdo torna o verídico indistinguível do fake

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A greve de atores e roteiristas de Hollywood segue a todo vapor. Não sei se será bem-sucedida, mas, no que diz respeito ao diagnóstico, os profissionais do cinema acertaram na mosca: o uso da Inteligência Artificial (IA) ameaça seus empregos.

Muito em breve será possível fazer um filme do zero, gerado inteiramente por IA, que seja indistinguível de um filme com atores reais. E, se é possível usar a voz e imagem de pessoas reais para encenar obras de ficção que eles nunca encenaram, é possível também usar sua imagem para atribuir-lhes falas e atos que nunca praticaram, com a intenção de enganar a opinião pública.

Grevista critica uso da Inteligência Artificial em cartaz em Los Angeles - Mike Blake - 17.jul.23/Reuters

No fim de semana da eleição, um vídeo bombástico mostra um dos candidatos falando algo terrível. Não há tempo hábil para encontrar e punir os responsáveis, nem para circular um desmentido no WhatsApp. Vídeos falsos buscando caluniar ou enaltecer personalidades virão de todos os lados. Estaremos perdidos num mar de versões igualmente realistas.

Deixando claro o que está por vir: não estamos falando de um grupo de profissionais de vídeo que, numa noite de trabalho, conseguem editar um vídeo e colocar nele o rosto de um famoso. Estamos falando de qualquer leigo, em sua casa, em dez minutos, gerar dezenas de vídeos realistas completamente inventados de qualquer pessoa que lhe dê na telha. Esse dia ainda não chegou, mas não está distante.

E ele mudará a maneira a como nos relacionamos com conteúdo em vídeo. Até hoje, o vídeo (bem como áudio e foto) trazia consigo uma expectativa de autenticidade. Primeiro, porque é gerado por um processo puramente mecânico a partir da realidade observável —ao contrário, por exemplo, do desenho, que passa pela mente do autor. E, em segundo lugar, porque forjar ou adulterar um vídeo era complexo, trabalhoso e deixava marcas identificáveis.

Não que fosse impossível enganar a opinião pública com uma foto ou um vídeo. Cortes discretos ou a omissão de contexto podem alterar radicalmente o teor e o significado de um vídeo —e isso sem IA nenhuma. Ainda assim, havia uma expectativa de que, por mais descontextualizado ou recortado que estivesse, um vídeo registrava algo que aconteceu. Essa expectativa vai cair, e com o fim dela nasce um novo mundo.

Que na verdade é o mundo antigo, isto é, o mundo em que a humanidade viveu desde sua origem até a adoção da fotografia. Existiam registros no passado? Claro. Só que o texto escrito e a pintura, ao contrário do vídeo e da foto, não trazem consigo nenhuma expectativa intrínseca de veracidade apenas por terem sido registrados naquele meio. Era, portanto, um mundo com mais divergências possíveis a respeito dos fatos. Daqui em diante vídeos e fotos não serão mais confiáveis que palavras e desenhos.

Fatos já são objeto de controvérsia hoje em dia –com "fatos alternativos" ao gosto do freguês. A tendência é isso se intensificar ainda mais. O barateamento da fabricação de conteúdo audiovisual realista nos distancia da realidade, ao tornar o verídico indistinguível do fake. Ao contrário dos profissionais de cinema americanos, não acredito que esse processo possa ser barrado. O que podemos fazer é nos adaptar à mudança.

O papel de instituições capazes de ir atrás da informação, contactar os envolvidos e as testemunhas para validar uma foto ou vídeo se tornará mais importante. Ou seja, o jornalismo seguirá fundamental. Com a queda da confiabilidade técnica, a reputação pessoal também aumentará de valor. E o mais importante será o aprendizado social de um certo ceticismo: não é porque você está vendo, que aconteceu.

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