Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

Lugar de fala não pode ser confundido com argumento de autoridade

Expressão tornou-se instrumento cômodo para calar boca dos que estão em desacordo

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Outro dia recebi um e-mail perplexo de uma aluna minha. Oriento seu doutorado sobre Alair Gomes, um fotógrafo fascinado pela beleza masculina. Sobretudo nos anos 1970 e 1980, a partir da janela de seu apartamento, captava imagens de rapazes na praia de Ipanema.

Suas fotografias alimentam-se de fascínio homoerótico para transcendê-lo. Paira nelas um apogeu harmônico que lembra os nus masculinos do renascimento florentino.

Mas a questão é outra. Minha aluna entrou em contato com um ativista gay norte-americano, hoje bastante idoso, que conheceu Alair Gomes na década de 1970. Tiveram longa conversa por telefone, ao que parece não muito tranquila. Ele enviou depois para ela uma mensagem enérgica.

“Se realmente você é heterossexual, por que você, uma mulher hétero, está fazendo seu PhD na obra majoritariamente gay de um homem gay?”. “Você parece uma pessoa gentil, mas tenho a crença convicta de que o trabalho sobre um homem gay (escritores, artistas, fotógrafos etc.) deve ser sempre feito por alguém da mesma sexualidade. O que é também bom senso”. Clube exclusivo, portanto: não entre.

Nada impede que um pesquisador gay faça um excelente trabalho sobre um artista gay. E nada impede que ele também produza excelentes resultados estudando artistas héteros —a história da arte tem exemplos numerosos de casos assim.

Creio que minha aluna, mesmo sendo sensível à beleza masculina, pode ter duas vantagens: a de não limitar suas análises ao campo erótico, deixando de perceber o que esteja além, e a de não confinar a obra de Alair Gomes no âmbito de uma militância. Está claro, um pesquisador homossexual pode escapar a essas demarcações, mas estará cercado por um número maior de armadilhas. 

Nada tenho em contrário a que se centrem estudos no específico erotismo e ativismo. Porém, estes não devem impedir que a exploração tome outros caminhos, ampliando o conhecimento e a percepção.

O episódio que assinalei traz um caso claro de “lugar de fala”, expressão bastante empregada hoje em dia. O tema é delicado e procuro tomar algumas precauções.

Existem minorias que sofreram opressões ao longo da história e que são oprimidas ainda hoje. Minorias cujas vozes foram, ou continuam sendo, abafadas. Qualquer sentimento de dignidade humana, por menor que seja, leva a apoiar todos os movimentos que lutem para que elas manifestem suas expressões plenas e livres.

Mas não se pode confundir direito à palavra com argumento de autoridade. Precisamente, a expressão “lugar de fala” vem sendo usada nesse sentido com muita frequência. Não discuto teoricamente essa noção; discuto o emprego sumário e autoritário que leva muita gente a impor, sem discussão, suas convicções. 

Tornou-se um instrumento cômodo para calar a boca dos que estiverem em desacordo. Só eu posso falar de algo referente à minha minoria, porque pertenço a ela.

Ora, pertencer a uma minoria confere autoridade narrativa e testemunhal apenas. Porque o único lugar de fala admissível quando se trata de conhecimento e reflexão é o da universalidade racional. Fora dele, desabamos no campo inseguro das paixões. Ele garante que os lugares de fala não interditem a própria fala.

O argumento de autoridade engendra um corolário sinistro: o do preconceito. No caso de minha aluna, o preconceito chega a dizer que a incapacidade a ela atribuída tem a evidência do bom senso.

O mesmo bom senso, a mesma evidência que parecem tão indiscutíveis, as mesmas obviedades que nos dizem também que pobre não gosta de trabalhar, que há raças superiores e inferiores, que as mulheres não são tão inteligentes quanto os homens. O leitor poderá colaborar, se quiser, ampliando essa lista de estigmas que são puro instrumento de opressão cruel e burra.

Penso numa minoria na qual me incluo, não tão em destaque, mas que sofre também preconceito: a minoria dos velhos. 

Em número cada vez maior, nós, os velhos, somos vistos como inúteis, como não produtivos, pesamos na economia com nossas aposentadorias ou dificilmente encontramos trabalho; somos insultados ou tratados com ternura preconceituosa (“tadinho, aquele tiozinho está tão velhinho!”).

Eu era incapaz de sentir, quando jovem, o declínio das forças que sinto agora. Nos meus 20 ou 30 anos, velhice era uma abstração. Seria absurdo, porém, reservar apenas para velhos os estudos sobre a velhice em todos os campos.

Dentro do domínio da razão, ninguém tem autoridade para impor sua palavra e, muito menos, para emudecer a do outro.

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