Esquerda deve tirar foco da pauta identitária para ser eleita, diz Mark Lilla

Em entrevista, cientista político afirma que causa precisa de menos manifestantes e mais prefeitos

RESUMO Em entrevista à Folha, autor do artigo político mais lido do New York Times em 2016 defende que a esquerda precisa de menos manifestantes e mais vitórias eleitorais. Ele critica a política identitária abraçada pelos democratas e a falha do partido em conceber visão de país na qual diferentes grupos se reconheçam. 

 

Mark Lilla se tornou o mais odiado dos pensadores de centro-esquerda ao criticar, em artigo no New York Times, em 2016, logo após a eleição de Donald Trump, a política identitária abraçada pelo Partido Democrata.

Para o cientista político e professor da Universidade Columbia, o discurso que enfatiza identidades e isola os eleitores de grupos minoritários é responsável pelas seguidas derrotas dos democratas nos Estados Unidos.

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O cientista político Mark Lilla, da Universidade Columbia - Divulgação

Ao segmentar o eleitorado e customizar a mensagem para hispânicos, negros, mulheres e cidadãos LGBT, os liberais americanos —no sentido que a palavra tem nos EUA, de pessoas de centro-esquerda que defendem atuação do Estado para reduzir desigualdade— teriam perdido a capacidade de formular uma visão de país que atraísse toda a população.

O texto "O fim do liberalismo identitário" foi o artigo político mais lido do jornal naquele ano, e acabou se transformando em um livro, "The Once and Future Liberal: After Identity Politics" (O liberal de então e o do futuro: depois da política identitária), lançado nos EUA em agosto do ano passado pela HarperCollins. Novamente, seu argumento foi recebido com críticas viscerais.

Lilla, que virá ao Brasil para participar de uma das conferências do ciclo Fronteiras do Pensamento, em novembro, diz que se transformou em um elemento "tóxico" para a esquerda, mas dobra a aposta. "Não se trata de parar de lutar pelos direitos das minorias, mas sim de começar a ganhar essas lutas", disse, em entrevista à Folha.

Para ele, uma outra prova de que as políticas identitárias são equivocadas é que líderes autoritários populistas de direita, como Vladimir Putin, o húngaro Viktor Orbán e até o grupo racista americano Ku Klux Klan fazem da identidade sua razão de ser.

 

Folha - O senhor afirma que os liberais deveriam abandonar o discurso focado nas minorias para voltar a ganhar eleições. Mas ao fazer isso, os liberais não se arriscam a abandonar a luta pelos direitos das minorias, das pessoas que ainda não têm direitos assegurados?

Mark Lilla - As pessoas interpretaram meu livro da forma errada. Eu não defendo que se abandone a luta pelos direitos das minorias. O sentido de se lutar pelos direitos das minorias é conseguir governar de forma que seja realmente possível proteger esses direitos. Para isso, é preciso ganhar as eleições. Você não vai conseguir proteger ninguém se não vencer, você estará apenas envolvido em um teatro simbólico.

No governo americano, os estados têm muito poder. Por exemplo: no país, existe um direito constitucional ao aborto. Mas, em muitas partes do país, principalmente no Sul e no Sudoeste, uma mulher não consegue fazer um aborto porque os estados impõem muitos obstáculos para os médicos que fazem o procedimento, exigem que as mulheres passem por um período de espera ou se submetam a exames e testes humilhantes.

Mas as legislaturas estaduais podem fazer isso, mesmo o aborto sendo um direito constitucional?

Sim, porque a Suprema Corte não diz exatamente o que é necessário fazer para garantir que uma mulher tenha direito ao aborto. Então, para proteger os direitos de uma jovem negra no Texas, você precisa ganhar um cargo eletivo naquele estado.

O único jeito de vencer eleições é persuadir texanos, que vivem em um estado religioso, de maioria branca, e para isso é preciso achar uma mensagem que ressoe com eles.

Ou seja, não estou dizendo que nós devemos deixar de lutar pelos direitos das pessoas ou nos voltar para outros grupos. Meu ponto é que os democratas perderam a capacidade de conceber e comunicar uma visão de país na qual pessoas de vários grupos diferentes se reconheçam, e sintam que o programa político é para elas também.

Se você falar em princípios gerais democráticos, como solidariedade e proteção de direitos, isso atinge igualmente o trabalhador branco e a jovem negra que acabei de mencionar.

Mas o problema da política identitária é que ela mudou o foco. Priorizaram a política simbólica de querer reconhecimento, em vez de ganhar eleições. E essa política enxerga o país apenas como uma série de tribos... Então como eles vão conseguir chegar a uma visão geral se eles não acreditam na nação como um todo?

O senhor acredita que existe o risco de as minorias, que estão acostumadas a serem o foco da mensagem, sentirem-se excluídas se a esquerda passar a ter um discurso mais abrangente?

Eu acho que não. Não estou dizendo que não devemos falar em direitos das minorias, estou dizendo que não devemos falar nesses direitos em termos de identidade.

Tudo o que preciso fazer para ajudar a jovem negra é convencer o eleitor branco de que os princípios de solidariedade e proteção igualitária se aplicam aos dois. O eleitor branco não precisa reconhecer a concepção da jovem negra sobre ela mesma, sobre sua experiência como negra, sobre a história dos negros. Eu só preciso que os dois concordem em relação a um programa político, para que eles consigam nos eleger.

O senhor é a favor de políticas que tentam mitigar as desvantagens e injustiças sofridas pelas minorias, como ações afirmativas e cotas?

Sim, acho que são um programa de reparações que funciona. Mas eu gostaria que conseguíssemos justificar esses programas para os eleitores brancos.

Hoje em dia, ao darmos a vaga a um estudante negro que não tem nota suficiente para ser admitido, ficará de fora um estudante branco. Mas não vai ser um branco da burguesia, vai ser um branco da classe trabalhadora. E a realidade é que ambos, o negro e o branco de classe baixa, precisam de ajuda para entrar na universidade.

Gostaria que pensássemos em formas de abordar essa questão. Porque hoje, isso ajuda a direita, ao voltar segmentos de baixa renda uns contra os outros.

O senhor acredita que o fenômeno Donald Trump seja, em certa medida, uma reação à exacerbação da política identitária no país?

Há duas coisas acontecendo neste país. Uma é política eleitoral, a outra é uma espécie de revolução esperançosa na sociedade americana, ligada a minorias, a mulheres, à sexualidade.

Esse movimento é liderado pelas elites do país —nas universidades, em Hollywood, no mundo corporativo. Então Trump atrai as pessoas que sentem que a cultura delas está sendo modificada por pessoas de outra classe social, e elas não têm nenhum poder sobre isso.

Essas pessoas acham que não se trata de uma revolução democrática. E isso abre caminho para que os democratas sejam retratados como esnobes culturais, que desprezam essas pessoas e não estão nem aí para os interesses delas. O maior erro é que a política identitária impediu ativistas de pensar em termos de como se ganha uma eleição, impediu que desenvolvessem uma visão unificadora de país, que também incluiria as pessoas com as quais eles se importam.

Hillary Clinton não conseguiu articular esses temas e ficava constantemente mencionando esses grupos identitários. Ela não conseguiu unir o eleitorado.

É possível comparar a popularidade de Trump e a ascensão de líderes autoritários populistas, como Vladimir Putin, na Rússia, e Viktor Orbán, na Hungria, como uma reação à exacerbação da política identitária e do politicamente correto?

Pelo contrário. Na realidade, esses líderes também usam a política identitária, por meio da identidade nacionalista. Historicamente, a política identitária era um reduto da direita, seja na Europa na primeira metade do século 20 ou agora, com esses líderes. E Trump também explora isso.

Nesses lugares, não existe a política identitária de esquerda de que estamos falando. Esse é um dos motivos pelos quais estou muito interessado em minha ida ao Brasil, um país multiétnico e multicultural. Quero ver que tipo de tensões políticas isso produz.

No artigo, o senhor afirma que a Ku Klux Klan foi o primeiro grupo identitário. Mas será que a comparação é válida? A KKK estava tentando eliminar uma minoria, os negros, enquanto grupos identitários de hoje querem apenas conquistar mais direitos, não eliminar o dos outros...

Eu obviamente não estava comparando moralmente a KKK com os grupos atuais. Estava simplesmente apontando que a política identitária branca tem uma longa história nos EUA. E é por isso que os liberais precisam se afastar de políticas identitárias, já que elas representam um risco de reação negativa séria e perigosa. Como estamos vendo hoje.

Entendo que o senhor enfatize que não está falando em abandono da luta pelos direitos das minorias...

As aspas corretas são: eu quero vencer essa luta. Não se trata de parar de lutar, mas precisamos começar a ganhar essas lutas.

Neste momento, os Estados Unidos têm um presidente famoso por suas posições ou opiniões misóginas e até racistas. O senhor acha que é um bom momento para abandonar o discurso de defesa dos direitos das minorias?

É exatamente por isso que agora é o momento ideal, porque nós precisamos ganhar. Precisamos vencer, mais do que nunca, porque temos um presidente que se opõe a esses direitos. É o momento exato para começar a vencer eleições, em vez de ficar apenas levantando nossas espadas no ar e nos expressando. É hora de realmente destronar o Partido Republicano.

O senhor esperava reações tão viscerais ao seu artigo publicado no New York Times?

Não, na verdade, não esperava. Eu escrevi aquilo em duas tardes, estava só desabafando, porque estava frustrado. Não esperava transformar aquilo em livro.

Mas a intensidade da reação na esquerda —uma crítica histérica que não abordava o meu argumento— apenas confirmou minha visão de que a política dos democratas foi simplesmente substituída por uma pseudopolítica de reconhecimento cultural.

O senhor enxerga um tipo de censura que o impede de questionar se a abordagem da esquerda está sendo eficiente? Katherine Franke, que também é professora na Universidade Columbia, o acusou de tornar a defesa da "supremacia branca" respeitável de novo...

Se eu estivesse diante de um juiz, diria: meritíssimo, "I rest my case" [expressão usada em tribunais, quando se acredita que algo que foi dito prova que a pessoa estava certa]. Essas pessoas apenas corroboram minha tese.

Em relação a Katherine Franke: de todos os professores de Columbia, eu escrevi o livro mais polêmico do ano, e ninguém, nem um único professor da universidade, convidou-me para debater, ou falar para a classe deles, fazer uma palestra. Nada, silêncio completo.

Na sua opinião, eles estão censurando o debate ou simplesmente não estão interessados?

Eles não querem debater, porque não querem legitimar uma discussão sobre isso.

Independentemente da enxurrada de críticas, o texto foi o artigo político mais lido do ano, tocou em algum ponto nevrálgico.

Houve uma reação histérica de gente que passa o tempo todo no Twitter e acha que apertar o botão "enviar" é um ato político. Mas fiquei muito feliz de também receber retorno de liberais que são muito comprometidos com reformas, mas estão cansados de perder eleições. Eles querem que os democratas ganhem, mas simplesmente não podem criticar a orientação do partido.

Uma líder de veteranos das guerras do Iraque e do Afeganistão me escreveu dizendo que tinha orgulho do país, orgulho de ser lésbica, e que estava esperando que alguém escrevesse um artigo como o meu.

Não apenas essas pessoas não podiam falar sobre esse direcionamento do partido, elas estavam sofrendo bullying. E não conseguiam articular sua crítica, pôr em contexto histórico, que foi o que tentei fazer no livro.

O senhor mencionou que coleciona os tuítes mais engraçados ou cruéis sobre seu trabalho...

Sim, guardei alguns, os que eram engraçados —intencionalmente ou não. Mandei como cartão de Natal aos amigos, em vez da foto da minha família [há uma tradição nos EUA de mandar uma foto de família com mensagem natalina].

Qual foi o papel das redes sociais no acirramento da polarização política e da controvérsia em relação ao seu livro?

Eu nunca tinha usado o Twitter. Foi a minha introdução ao pântano. E ficou claro algo que todos já sabem, que as pessoas tuítam um boato sobre um boato de um boato do que diz um livro. Passo muito tempo nas entrevistas corrigindo as pessoas porque elas não leram o livro.

Como você responde à crítica relacionada ao seu lugar de fala, de que, como homem, branco e heterossexual, o senhor não estaria autorizado ou qualificado para falar sobre direitos das minorias?

Uma argumentação é uma argumentação, não importa quem faça essa argumentação. Quem diz isso está tentando evitar uma discussão.

O senhor critica o movimento Black Lives Matter, dizendo que é o principal exemplo de como não lidar com a solidariedade, por causa das táticas agressivas de ativismo. Em que sentido o movimento é um desserviço à causa?

A rede Fox News é a única maneira de se comunicar com o eleitor republicano, e ela funciona como um filtro reverso: só deixa passar as coisas negativas sobre os democratas e deixa todo o resto de fora.

Então, se você faz maluquices como os ativistas do Black Lives Matter, que interromperam e acabaram com comícios de Hillary e Bernie Sanders, eles adoram.

Aquilo foi uma insanidade. E ficou passando sem parar na Fox News. Não à toa, Steve Bannon [ex-estrategista-chefe de Trump] disse torcer para que a esquerda continuasse falando em políticas identitárias, porque isso significa que os conservadores vão ganhar, e ele vai poder implementar sua agenda de nacionalismo econômico.

Todas as vezes que ativistas fazem algo desse tipo, eles estão servindo café da manhã na cama para Bannon.

Os liberais continuam surdos às suas críticas ou há alguns que entendem o que o senhor quer dizer?

Alguns entendem, outros não. Um senador me pediu que conversasse com ele sobre o tema, e alguns arrecadadores de campanha democratas me disseram que estão cansados de perder e querem conversar. Eu tenho várias ideias para a próxima eleição, não sei se serão artigos acadêmicos ou algum outro tipo de contribuição. Mas quero fazer alguma coisa.

O senhor acredita que, então, houve algum tipo de eco em relação a sua mensagem? Ela não foi em vão?

Com certeza. O argumento agora está presente, a questão é discutida com frequência. Eu também vejo pessoas que se denominam liberais ou de esquerda fazendo o mesmo tipo de argumentação que eu fiz, mas sem mencionar meu nome, claro, porque isso seria tóxico. Mas por mim tudo bem, o importante é a argumentação vencer.

O senhor se tornou tóxico na esquerda?

Ah, certamente. Ainda bem que tenho "tenure" [estabilidade na carreira acadêmica; é um professor que não pode ser demitido].

O que o senhor acha do movimento em que estudantes proíbem certas pessoas de fazer palestras nas universidades por questões ideológicas? Trata-se de uma forma válida de combater o chamado discurso de ódio, ou é simplesmente censura prévia?

Nós poderíamos falar sobre combater discurso de ódio, se as pessoas realmente se concentrassem no que é genuinamente discurso de ódio. Mas a definição foi ampliada e hoje inclui qualquer coisa com a qual eu não concorde e que eu não queira ouvir.

O senhor diz que não precisamos de mais manifestantes, precisamos de mais prefeitos. Não dá para ter os dois?

Eu quis dizer que já temos manifestantes suficientes, e precisamos de mais prefeitos. A única maneira de você subir na hierarquia e virar governador é começar como prefeito ou legislador. É preciso começar a fazer a longa marcha pelas instituições.

 

Ciclo de conferências também traz Mukherjee, Weiwei e Catherine Millet

Mark Lilla fará palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento no dia 19/11, em Porto Alegre, e 21/11, em São Paulo.

A série de conferências, que começa em maio, também traz o médico Siddhartha Mukherjee, ganhador do Pulitzer, a crítica de arte Catherine Millet, o psicólogo Joshua Greene, os artistas plásticos Ai Weiwei e Vik Muniz, os escritores Leïla Slimani, Alejandro Zambra e Javier Cercas e os colunistas da Folha Luiz Felipe Pondé e Fernanda Torres.

Mais informações no site fronteiras.com e no telefone (11) 4020-2050.


Patrícia Campos Mello, 42, é repórter especial da Folha.

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