Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

Direita tem nela um mal constitutivo

Individualismo e desprezo pelos enjeitados da vida compõem dragão do tradicionalismo

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Monsenhor Bienvenu era bispo na pequena cidade de Digne. Vivia numa casa modesta, lá nos Alpes da França, porque preferiu que seu palácio servisse de hospital para os pobres. Despojou-se do o que possuía para ajudar os que precisavam. Socorria a todos, sem verificar credos nem pecados.

Ali pelos anos de 1820, o bispo teve um encontro revelador. Na sua diocese havia um velho revolucionário de 1789, iluminista e ateu. Ele era isolado e execrado, porque corriam dias em que triunfava a reação aos ideais filosóficos. Ao saber que esse homem agonizava, Monsenhor foi visitá-lo.

O bispo era monarquista, recusara-se a prestar juramento ao governo revolucionário e exilara-se em Roma durante aqueles períodos conturbados. Reacionário, portanto. Mas os dois velhos tiveram uma conversa cordial. 

O homem tem um tirano, a ignorância, e deve ser guiado pela ciência, dizia o moribundo. E pela consciência, acrescentava o bispo. Que é a nossa ciência interna, replicava o outro.

A revolução de 1789 foi boa, dizia o subversivo. O bispo mencionava os crimes que ela cometeu em nome dessa bondade. O revolucionário então lembrava os crimes cometidos pela igreja em nome da fé.
Monsenhor Bienvenu nunca existiu. Embora inspirado por um bispo verdadeiro, é uma invenção de Victor Hugo. Está num romance oceânico: “Os Miseráveis”.

Hugo chega a inverter os papéis quando o sacerdote, tomado pelas convicções sinceras do ateu, do revolucionário, ao invés de abençoar, pede-lhe sua bênção.

Esse prodigioso início de “Os Miseráveis” me veio ao espírito ao ler a notícia do sermão proferido por dom Orlando Brandes, arcebispo de Aparecida do Norte. Foi durante as festividades do dia consagrado à padroeira, em missa da manhã. Suas palavras impregnaram-se de carga simbólica, já que o presidente da República viria ao santuário, à tarde.

O arcebispo arremeteu contra o “dragão do tradicionalismo” e disse, com todas as letras, que “a direita é violenta, é injusta”. De imediato, leitores se puseram a criticar em seus comentários. Um argumento principal voltava sempre: “Ah é? E os crimes da esquerda? E os crimes de Stálin?”. Hugo nos lembra que essas denúncias poderiam não parar aí, e voltar até os crimes provocados pelo iluminismo, pela Revolução Francesa, momento em que foram criadas as categorias de direita e de esquerda.

A história é constituída pela violência humana. “Homo homini lupus est”, para gastar aqui um latinzinho que eu não tenho: o homem é o lobo do homem. Já se notou que essa fórmula não é nada justa para com os lobos. 

Ela é verdadeira, porém, para os humanos: “o seu próximo é, para eles [os homens], não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo —Homo homini lupus.” 

Quem descreveu assim foi Freud, em seu “O Mal-Estar na Civilização”. Os lobos da esquerda como da direita cometeram atrocidades.

No entanto, as palavras do arcebispo soam em mim como verdadeiras. Evitando ambiguidades, assinalo que não sou católico, nem tenho simpatias por qualquer religião.

É que a direita tem nela um mal constitutivo. O iluminismo trouxe ao espírito humano os ideais de uma sociedade justa, possível de ocorrer na história. Isso faz com que os crimes cometidos em seu nome sejam ainda mais perversos, pois atacam suas verdades profundas. Mas não as destroem. 

O individualismo, o desprezo pelos enjeitados da vida, as imensas desigualdades coletivas, a degradação pela ignorância, a atrofia pela pobreza, o lucro desenfreado para alguns poucos, compõem o dragão do tradicionalismo.

“Enquanto existir, por causa das leis e dos costumes, uma danação social criando infernos artificialmente, em plena civilização...” —para retomar as palavras que abrem “Os Miseráveis”— enquanto isso existir, é preciso resistência e combate. No mundo que se desenha hoje, e sobretudo no Brasil de hoje, esse combate é imperativo.

Os valores intrínsecos da esquerda, que já foi, e será ainda, criminosa, pulsam no tempo contra os crimes que ela própria cometeu e que nada justifica. O iluminismo é um projeto filosófico. Inserido na história, não escapou das violências que a constituem. É com o tempo que se aprende a importância maior da fraternidade, a mais bela das três palavras revolucionárias.

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