Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

Teatro foi o jardim de Epicuro de Fernanda Montenegro

Epicuristas buscaram desenhar uma vida possível no mundo caótico, baseada em laços de amizade

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A vacina chegou e animou, mas devagar com o andor. Uma coisa é vacinar um, dez, cem ou mil. Outra é vacinar todos os que precisam. Com um, dez, cem ou mil é possível fazer muita demagogia, de olho no poleiro que vai ficar vazio em 2022. Você, eu não temos ainda nenhuma perspectiva de nos livrarmos da praga, porque a fila é longa, longuíssima, e os escolhidos vão pingando em conta-gotas.

Enquanto isso, o país quebrou, como disse e desdisse o capitão, mas a verdade é muito pior: o país está no pleno caos apocalíptico. Degringolamos ladeira abaixo num abismo de horrores. Os acontecimentos de Manaus revelaram para o mundo inteiro o que pode ocorrer nesta terra graças a incúria explícita, consciente, de governantes imorais e estúpidos. Estamos sem nenhuma esperança que pudesse brilhar um pouquinho lá no fundo.

Temos de conviver com isso, ou antes, de encontrar um jeito de sobreviver. Sob pena de sermos arrastados, nós também, como vítimas dessa demência que varre tudo.

Epicuro, filósofo grego, viveu em época de crise da democracia. Sua filosofia encontrou um eco imenso na Antiguidade —durante cinco séculos tornou-se muito popular—, mas foi perseguida pela história como nenhuma outra: caluniada, ocultada, eliminada. De Epicuro, sobrevivem apenas três cartas e fragmentos dispersos.

Há um simbolismo irônico no fato de que o último grande epicurista, Diógenes de Enoanda, tenha feito esculpir a doutrina de Epicuro num muro de 4,4 metros de altura por 80 de comprimento, cercando uma praça. Isso no século 2º, e era como se ele dissesse: “Agora essas palavras admiráveis estão, para todo o sempre, gravadas na pedra indestrutível”. Chegou a nós apenas um terço desse escrito.

Filosofia do materialismo, sem apelos sobrenaturais, centrada na ideia do prazer refletido, prazer que regula seus limites pelos prejuízos que pode trazer, numa constante negociação, o epicurismo foi abominado pelos doutores da Igreja e por todas as religiões, ávidas por sacrifícios estoicos.

Traz, no entanto, algumas das melhores chaves para a compreensão do mundo, entre elas a do espírito derivando da matéria e o evolucionismo dos seres vivos e da cultura.

Os epicuristas empregavam uma palavra que parece nome de doença —exchoresis— para desenhar a vida possível no mundo caótico. Ela fala de um universo particular, distanciado da multidão, feito por laços de amizade, afeto que os epicuristas prezavam acima de tudo.

Esses afetos permitem encontrar um centro em relação ao resto da humanidade enlouquecida. A exchoresis leva à construção de um universo limitado que faz sentido, um lugar povoado por uma comunidade harmoniosa: a dos amigos. O sábio se desvia do mundo para encontrar um centro. “A amizade dança em torno do mundo habitado, chamando-nos assim para despertar e proclamar a nossa felicidade” é uma sentença epicurista.

Essa história da exchoresis me veio à cabeça porque li, com atraso, “Prólogo, Ato, Epílogo”, memórias que Fernanda Montenegro escreveu em colaboração com Marta Góes. O estilo é elegante; o livro deveria ser ensinado nas escolas e estar presente nas listas dos vestibulares.

Memórias tendem a valorizar o memorialista. Não é o que ocorre aqui. Nesse livro, não há nem modéstia, nem imodéstia: as coisas ocorreram assim. E, ao acontecerem, revelam menos questões pessoais do que articulações com a complexidade do mundo, negociações que expõem mentalidades coletivas presentes durante esse percurso de vida.

No meio artístico, não é raro que os egos sejam monumentais e as maldades fervilhem. Aqui, nada disso. O tom é seguro; o olhar, delicado. Não me lembro de nenhuma crítica pessoal, salvo uma leve observação sobre a dubladora italiana de seu personagem em “Central do Brasil”!

Fernanda Montenegro não se põe em evidência: conta e reflete sobre o que conta. No “Prólogo”, traz a saga de sua família: é, ao mesmo tempo, uma lição de sociologia e de história. Estabelece o meio no qual a narradora surge, quase como um fruto. Ela, o tempo todo, negocia com o acaso, com as circunstâncias; e, como que sem querer, seu fenomenal talento desabrocha.

O teatro situa-se no centro, está claro, e por ele enxergamos a cultura brasileira ao longo desses anos. Fernanda Montenegro é habitada pelo teatro que, por sua vez, lhe permite enxergar o mundo. Nunca sozinha, sempre com o concurso de amigos, de parceiros. Tenho a impressão de que o teatro foi, para Fernanda Montenegro, o seu jardim de Epicuro, a sua exchoresis.

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