Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

O cartão postal de Santos Dumont

Correspondência de 1904 revela um pouco da vida íntima do inventor, nascido há 150 anos

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No início do século 20 havia um tipo de cartão postal sem imagens, em que um lado vinha em branco, destinado a mensagens, e o outro exclusivamente ao endereço. Era possível escrever o que se quisesse do lado em branco, ou orná-lo com desenhos, conforme a veneta.

Faz alguns anos, por acaso, num antiquário on-line, encontrei um desses cartões. Como não era caro, comprei.

Caricatura do inventor Santos Dumont com seu dirigível em cartão postal enviado em 1904
Caricatura do inventor Santos Dumont com seu dirigível em cartão postal enviado em 1904 - Acervo pessoal

Lembro-me de que, nesta quinta-feira (20/7), comemoram-se os 150 anos do nascimento de Santos Dumont. Sabemos de seus feitos como pioneiro no transporte aéreo, mas talvez menos a respeito de sua vida íntima, sobre a qual ele era discreto.

O cartão a que me referi revela um pouquinho dela. Sobre o lado livre, foi feita uma imagem com muito esmero: uma caricatura de Santos Dumont. O cuidado é tanto que a figura do aviador, de pé, foi recortada em cartolina, a cabeça e o chapéu de palheta desenhados, mas o corpo trazendo roupas feitas de tecido: a calça branca e o paletó felpudinhos e, na lapela, uma adorável flor em tecido fino cor de rosa. Santos Dumont traz, debaixo do braço, um dirigível marcado com o número 8.

A esse pequeno personagem foram acrescentados pés, e ao dirigível, cesta e hélice, desenhados a bico de pena no próprio cartão. A mesma tinta, o mesmo traço, escrevem, no alto, para que fique claro, em letras de forma: "Santos-Dumont".

Mais ainda, no canto esquerdo, essa tinta e essa pena traçam a dedicatória, em francês: "J’espère avoir le plaisir de vous revoir bientôt", ou seja, "Espero ter o prazer de revê-lo logo". Em seguida, "amitiés" – "amizade", e a assinatura: S. Dumont.

Um trabalho de capricho que, não tenho dúvidas, foi feito pelo próprio Santos Dumont, muito hábil com suas mãos.

Cartão postal que Santos Dumont enviou a um certo monsieur Rousseau, morador da cidade francesa de Matour, em 1904 - Acervo pessoal

Ele poderia ter enviado esse cartão para alguns de seus amigos ou conhecidos pertencentes à altíssima sociedade que frequentava, como a princesa Isabel, que se interessava por suas aventuras aéreas. Ou Louis Cartier, o célebre joalheiro que criou para ele o relógio de pulso num modelo batizado com o seu nome, e que dizem ser o primeiro relógio concebido para ser levado no braço.

Ou seu amigo, o multimilionário Henri Deutsch de la Meuthe, que criou um prêmio polpudo para a primeira máquina voadora capaz de fazer o trajeto de Saint-Cloud à Torre Eiffel, ida e volta em menos de meia hora, prêmio esse abocanhado por Santos Dumont com o dirigível nº 6.

Ou duque de Talleyrand-Périgord, ou o marquês de Dion, ou a célebre Liane de Pougy, ou o conde e a condessa Greffulhe, que aparecem em um quadro pintado por Gervex no restaurante do Pré-Catelan, junto do aeronauta. Ou ainda o célebre tenor Enrico Caruso, que era excelente desenhista e que fez do aviador um retrato todo anguloso e sério.

Santos Dumont era muito rico e vivia nas rodas mundanas parisienses mais exclusivas daqueles tempos. Mas a pessoa a quem ele ofereceu sua própria caricatura amorosamente elaborada não pertencia a esse mundo rico e elegante.

O verso do cartão, ali onde está o endereço do destinatário, nos informa. Primeiro o carimbo nos diz a data: 10 de março de 1904. O inventor, com 30 anos, já havia feito seus célebres voos com dirigíveis, mas ainda não com "o mais pesado do que o ar", ou seja, seus primeiros aeroplanos.

Enfim, quem era seu correspondente? Um certo monsieur Rousseau, que vivia em Matour, cidadezinha com pouco mais de mil habitantes, a uns 400 quilômetros a sudoeste de Paris, no departamento de Saône-et-Loire.

Como a cidade é minúscula, não foi preciso escrever endereço detalhado, bastou indicar: "Receveur de l’Enregistrement". Creio não errar muito dizendo que essa função equivale, mais ou menos, a auxiliar de cartório; aquele que cuida das estampilhas e das firmas reconhecidas.

Às vezes cogito um dia ir a Matour, só para ver se consigo algum traço nos arquivos desse monsieur Rousseau, coisa que certamente nunca vou fazer.

Está claro que esse cartão nada tem de uma correspondência profissional ou de negócios. Santos Dumont abre, com seu "espero ter o prazer de revê-lo logo", uma perspectiva, ou um desejo, de relação continuada.

Até aqui, é o que eu tenho de objetivo sobre esse cartão postal tão singular. Daqui para frente, são conjecturas. Quem não estiver de acordo, que interprete como quiser.

Nos nomes chiques da alta roda que citei acima, próximos de Santos Dumont, está a elegantíssima condessa Greffulhe, a musa inspiradora de Marcel Proust, que serviu de modelo para a sua Oriane de Guermantes. O meio parisiense no qual Santos Dumont evolui é muito parecido com o criado por Proust.

"Em Busca do Tempo Perdido", a saga escrita por Marcel Proust, contém muitos personagens homossexuais masculinos —e mesmo se nem todos são, de fato, homossexuais, muitos tiveram pelo menos alguma experiência do sexo entre homens.

Entre os francamente homossexuais, está o barão de Charlus, um dos protagonistas, aristocrata multimilionário de antiquíssima linhagem. Ele tem um protagonismo no livro "Sodoma e Gomorra", mas perpassa por todos os momentos da história contada por Proust.

Se lembro aqui do barão de Charlus, é que seus amores se dirigem sempre às classes muito inferiores à sua: garçons de restaurante, camareiros de hotel, cachorreiros, cocheiros de fiacre. Jupien, que o acompanhará até a senilidade, cuidando dele, é um alfaiate, e mesmo Morel, violinista, e a grande paixão de Charlus, é de origem popular. Em "O Tempo Reencontrado", o barão de Charlus aparece chicoteado num bordel masculino por jovens vindos do campo e pagos para isso.

Essa relação sexualizada de exotismo social —a atração por parceiros de classes inferiores— não é exclusiva de Charlus. É quase uma espécie de norma na sociedade homossexual, segundo exemplos bem numerosos que Proust descreve.

Com 23 anos, Marcel Proust encontrou o amor com Reynaldo Hahn, músico e de uma classe social próxima da sua própria. Essa ligação se transformará em amizade íntima e duradoura. Mas Proust terá, mais tarde, uma atração violenta por Alfred Agostinelli, seu chofer.

Quando Agostinelli o deixa, Proust, que sabia que o rapaz era apaixonado por aviação, dispõe-se a comprar um avião para ele e assim fazê-lo voltar. Mas não teve tempo: ao largo de Antibes, Agostinelli pilotava um avião que despencou no mar. A um amigo, Proust escreveu sobre o acidente: "um ser que eu amava profundamente morreu com 26 anos, afogado".

Santos Dumont e seu correspondente Rousseau, escrevente de cartório, tiveram, é bem possível, um encontro amoroso. Talvez Rousseau tenha ido a Paris a passeio, e deixado um traço no coração de Santos Dumont, que manda seu cartão caprichado na esperança de um reencontro futuro.

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