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Proust, morto há cem anos, resumiu espírito do tempo das artes em sua obra-prima

Dois primeiros volumes de 'À Procura do Tempo Perdido' ganham traduções, que trazem a obra para a atualidade

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Quadro

Quadro 'Vista de Delft', pintado por Johannes Vermeer Reprodução/Google Arts

São Paulo

Marcel Proust vislumbrou uma catedral em "À Procura do Tempo Perdido", sua obra-prima publicada entre 1913 e 1927. Fascinado pela arquitetura da Idade Média, o escritor francês concebeu um romance de estrutura fechada, dando ao livro a unidade construtiva das igrejas góticas.

"Quis dar à cada parte do meu romance um título. ‘Pórtico 1 Vitrais da Abside etc., para responder à crítica estúpida contra a falta de construção dos livros", ele escreveu, em 1919, numa carta ao amigo Jean de Gaigneron.

O escritor francês Marcel Proust - Reprodução

Por achar que soaria pretensioso, Proust renunciou à primeira ambição, mas a ideia de construir uma igreja continuou presente. Em sua visão, as catedrais eram "bíblias do tempo", e o romance seria um edifício da memória. Sem os títulos descritivos, o estilo gótico poderia passar despercebido ao leitor que se dispõe a enfrentar as quase 2.500 páginas do romance.

Acontece que Proust estava menos interessado no edifício de fato. Ele transpôs para o livro a relação entre o pensamento teológico e a simbologia. Se a imagem de um santo transmite ao fiel a sua santidade, a madeleine, mordida pelo narrador na famosa cena em "Para o Lado de Swann", inaugura a descrição das reminiscências da infância do narrador em Combray, vilarejo imaginário criado por Proust.

Além das alegorias, há, na estrutura do livro, dois rastros da primeira intenção construtiva. Examinando os títulos de cada tomo —"Para o Lado de Swann", "Para o Lado de Guermantes", "Sodoma e Gomorra"—, se encontra a mesma disposição bilateral das catedrais, com duas torres e duas naves nos dois flancos.

O romance se alicerça no motivo bíblico da pedra fundamental. Num episódio de "O Tempo Redescoberto", o herói pisa em dois blocos de pedra mal encaixados, no pátio da mansão dos Guermantes. A sensação o leva a pensar na primeira vez que experimentara algo similar, na Basílica de São Marcos, em Veneza. O personagem vê, então, a forma de uma igreja se erguer ao seu redor.

Três anos antes de Proust publicar o primeiro volume da "Procura", o compositor francês Claude Debussy vislumbrou uma "Catedral Submersa". Ouçamos a interpretação do pianista François-Joël Thiollier. De acordo com a partitura, a peça se inicia numa "névoa docemente sonora".

Debussy submerge a tonalidade, e o pianista sai da "névoa", como se encontrasse a catedral na superfície, aumentando a intensidade com que ataca as notas, numa ambiência misteriosa. De repente, a catedral se anuncia na música, com notas que ressoam como os sinos de uma igreja. Cada badalada perdura nos compassos, ressoando na estrutura do piano.

Debussy e Proust viveram 47 anos no mesmo mundo, mas não foram amigos. Suas catedrais, porém, são feitas da mesma matéria —o tempo. Para Debussy, a periodicidade musical imprime diferentes sentidos à composição. Já a "Procura", não respeita o tempo cronológico, juntando passado e presente, sob uma perspectiva circular.

A "Catedral Submersa" também orbita ao redor de uma melodia circular, com o primeiro tema sendo retomado no fim da peça. Se o piano emula as badaladas dos sinos, o som das igrejas de Combray e Balbec anuncia a passagem das horas do dia na "Procura".

Afinal, o tempo é aquele desnível no pátio da mansão dos Guermantes, que faz Marcel tropeçar. Ali, Proust admite que a catedral não seria erguida apenas em duas colunas, entre o tempo perdido e depois redescoberto.

A "Procura" seria lenta, assim como o som que ecoava na igreja de Combray, "um edifício ocupando, se possível dizer, um espaço de quatro dimensões —a quarta sendo a do Tempo".

Filho de mãe judia e pai católico, Proust nasceu em 1871, em Paris, e gozou até o fim da vida da herança a que tinha direito. Sua saúde, porém, sempre fora precária, com crises de asma desde a infância.

Homossexual, teve vários amantes e não titubeou ao tratar do tema em sua obra. Começou a escrever "À Procura do Tempo Perdido" em 1907, em seu estilo caótico, com borrões e rasuras.

A obra é composta por "Para o Lado de Swann", "À Sombra das Moças em Flor", "Para o Lado de Guermantes, "Sodoma e Gomorra", "A Prisioneira", "A Fugitiva" e "O Tempo Redescoberto", os três últimos publicados postumamente.

Em geral, os livros contam a vida de Marcel, nome citado apenas duas vezes em todo o romance, que tenta recuperar a infância a partir da memória, até descobrir a vocação literária. No livro, o escritor tece considerações sobre temas contemporâneos, como o Caso Dreyfus e a Primeira Guerra Mundial.

Asmático, Proust morreu na capital francesa, em novembro de 1922. Para lembrar o centenário de morte do escritor, o jornalista Mario Sergio Conti, colunista deste jornal, lança, em parceria com a também jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar, uma nova tradução dos primeiros dois tomos da "Procura".

"Pela dimensão dessa obra, ela sempre precisa estar antenada com a língua falada na atualidade", diz Conti. "Com a atualização, creio que será possível também expandir o círculo de leitores dos livros."

Para o português brasileiro, estão disponíveis duas traduções da "Procura". A primeira foi feita na década de 1940 por uma força-tarefa que envolveu os poetas Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Já nos anos 1990, o poeta Fernando Py capitaneou outra tradução.

Nesse sentido, Conti cortou a palavra "raparigas", do título do segundo volume da primeira tradução —"À Sombra das Raparigas em Flor" se torna "À Sombra das Moças Em Flor". Além de ser um regionalismo, "raparigas" pode ser sinônimo de "prostituta", o que não seria tão lírico para a procura de Marcel.

Substituição semelhante é feita no segundo tomo. Em vez de "No Caminho de Swann", lemos agora "Para o Lado de Swann", mais fiel à expressão "Du Côté de Chez Swann".

O próprio nome da obra se alterou. "Em Busca do Tempo Perdido" vira "À Procura do Tempo Perdido". Em francês, o termo "recherche" tem mais a ver com procura ou pesquisa. Não se trata, portanto, de "quête", que teria uma alusão à busca espiritual.

Alguns erros também foram corrigidos. É o caso da cena, ainda no primeiro volume, em que Marcel, no primeiro andar de sua casa, se depara com uma lareira de mármore de Siena, da Itália —e não de Viena, como na versão de Quintana.

Agora, Conti traduz "Sodoma e Gomorra", enquanto D’Aguiar verte "Para o Lado de Guermantes". "A dificuldade é bastante grande, a regra é não cortar a frase, depois tem a pontuação do autor, que é toda nova, você precisa pegar o ritmo da frase", ele afirma.

Além das novas traduções, chega agora às livrarias o livro "Proust e as Artes", do filósofo Roberto Machado, morto em maio do ano passado, pouco antes de concluir a obra. Nele, o autor mostra como a "Procura" reuniu em seus volumes as referências artísticas de seu autor.

Proust insere no romance um compositor fictício, Vinteuil. Ao ouvir a sonata de Vinteuil, forma que prevê a reexposição do tema inicial, Swann, dândi em quem Marcel se mira, vislumbra seu amor por Odette de Crécy, enxergando nela uma pintura renascentista.

Na Capela Sistina, no Vaticano, o italiano Sandro Botticelli pintou, nos anos 1400, o afresco "As Filhas de Jetro". Swann compara a beleza de Odette com uma delas, Séfora, mulher de Moisés, num deslumbramento do amor. Swann não podia distinguir as duas mulheres, de modo que "apertando a fotografia de Séfora, supunha apertar Odette contra o coração".

'As Filhas de Jetro', de Botticelli
'As Filhas de Jetro', de Sandro Botticelli - Reprodução

No afresco, Séfora é imaginada com tez rosada, longos cabelos dourados e lábios vermelhos. Swann erotiza Odette a partir da figura de Séfora. Assim como as imagens nas catedrais, a mulher, segundo Proust, se convertia em símbolo.

Além da arquitetura, a pintura é um tema-chave na descoberta da vocação literária de Marcel. Proust, segundo Machado, concebe uma tela como o fragmento de um mundo homogêneo. Ou seja, a partir da pintura o espectador pode entrar em contato com a essência do pensamento do artista.

Na "Procura", são citados mais de cem pintores, incluindo os impressionistas Manet, Monet, Renoir, Degas e Sisley. Proust tinha particular interesse, contudo, pelo pintor holandês Johannes Vermeer. Em 1921, com a saúde frágil, o escritor foi a uma exposição do artista em Paris. Na ocasião, admirou o quadro "Vista de Delft", que tinha visto em 1902, em Haia, e considerado "o quadro mais belo do mundo".

Na madrugada do dia de sua morte, Proust chamou sua faxineira e ditou um adendo em "A Prisioneira", incluindo uma menção à tela de Vermeer na cena da morte de Bergotte, escritor adorado por Marcel.

Pintado em 1660, "Vista de Delft" se insere no gênero pintura de paisagem. Vermeer apresenta a sua cidade, se valendo da luz natural. No primeiro plano, o espectador se depara com um rio, que reflete as construções espalhadas no horizonte. São castelos, palacetes e mansões, em estilo que remete à Idade Média.

Chama a atenção o modo como Vermeer pinta as nuvens, adensadas no céu claro. Com particular riqueza cromática, a cor branca muda de tom conforme a posição da nuvem, evocando a mudança na temperatura na cidade ao longo do ano. "É na pintura que Marcel descobre o que é a arte", diz Philippe Willemart, especialista na obra de Proust. "Ele descobre que ver já é interpretar."

A qualidade natural da luz de Vermeer lembra certo ideal artístico, ao modo do pensamento homogêneo, tal como preconizado pelo autor da "Procura". Já a mudança na tonalidade do branco das nuvens se refere a um dos aspectos das belas artes incorporado ao estilo de Proust.

Machado conta que os personagens do romance são apresentados sob diferentes luzes, no espaço-tempo. Sendo assim, Swann é o "vizinho de Combray" e, sem que a família de Marcel saiba, é "um dos membros mais elegantes do Jockey Club".

Outra característica da pintura é a relação de causa-efeito, como explicitado na cena da madeleine. O terceiro procedimento incorporado por Proust é a "produção de metamorfoses".

De modo análogo à criação de Vinteuil, o escritor concebe Elstir, um pintor imaginário, que sintetiza suas referências no campo da pintura. Segundo os críticos, Elstir seria um impressionista, talvez Manet, cuja tela "Molho de Aspargos" empresta o nome a uma obra do pintor imaginário.

Em Balbec, Marcel se maravilha com a pintura "Porto de Carquehuit", em que "as igrejas de Criquebec, que, ao longe cercada de água por todos os lados, porque vistas sem a cidade, pareciam sair das águas".

Por não copiar a realidade, mas interferir na paisagem, Elstir é o artista por excelência. Suas obras causam desordem ao mundo, provocando uma desarmonia nos elementos da natureza e produzindo imagens que não existem na vida real.

Não sem razão, o autor da "Procura" é um crítico da arte descritiva —na pintura e na literatura. Proust ridiculariza o gosto da aristocracia da época em "Para o Lado dos Guermantes". O duque se indigna com Marcel, depois de o jovem ter proposto a ele a compra de "Molho de Aspargos". "Só havia isso no quadro, um molho de aspargos semelhantes aos que você estava engolindo. Mas eu me recusei a engolir os aspargos do senhor Elstir."

Portanto, Proust transforma sua ideia de amor em literatura nas impressões deixadas pela música e pela pintura. Se Swann não distingue as imagens de Séfora e Odette, a "essência misteriosa" da sonata de Vinteuil só é comparada ao arrebatamento da paixão.

Mas o amor, transitório como o som que se espalha no espaço-tempo, é tido pelo autor da "Procura" como algo mundano, inferior à arte. "O amor para Proust não existe, é apenas uma projeção que fazemos no outro", afirma Willemart, o especialista.

Na "Procura", não há amor sem ciúme, um dos temas principais do romance. Assim se anuncia em Swann e Odette e, depois, entre Marcel e Albertine. O herói descobre que amar é uma doença, em crises de ciúmes quando vê sua amada na companhia de outras mulheres.

Ao lado de Albertine, Marcel achava a vida um tédio. Em sua ausência, tudo para o personagem era sofrimento. Se o tempo se esvai para nunca mais voltar, a procura de um amor perene se torna uma impossibilidade.

Na tragicidade da vida, a busca por um amor total será vã, porque, segundo Proust, a combinação entre amante e amado nunca formará um par simétrico ou harmônico. O amor será sempre aquele desnível, de onde se ergue a catedral do tempo.

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