Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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Jorge Coli

Obras melancólicas de Antonio Obá desmentem sua intenção esperançosa

Comentários do artista sobre suas pinturas realçam a autonomia da obra de arte, filha rebelde que rompe com seu criador

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A obra de arte é uma filha rebelde que rompe com seu criador. O artista não expõe seu pensamento —no sentido de pensamento racional— pelo objeto que inventa. Ao criar, ele introduz no mundo um ser pensante e autônomo. A obra ganha vida própria, separada de seu criador, e adquire a capacidade de se relacionar com o espectador de forma direta e intuitiva. Ela transcende as limitações da linguagem verbal e alcança o universo das sensações e das emoções.

Estou convencido de que existe uma separação forte entre o pensamento do artista e o pensamento da arte que ele produz.

Obra Fata Morgana de Antônio Obá
'Fata Morgana', de Antônio Obá, parte da exposição 'Revoada', em cartaz na Pinacoteca do Estado - Divulgação

Na vida de todos os dias, o artista pensa por conceitos, racionalmente, como qualquer ser humano. No momento da criação, alguns artistas podem ser puros intuitivos e, ao produzir a obra, não incluem quaisquer raciocínios. Avançam com os poderes do gesto, do impulso, tomado por forças que ele próprio não sabe bem dizer quais são.

Outros, ao contrário, podem ser reflexivos: neste caso, a gestação se acompanha de projetos pensados, de etapas refletidas, de correspondências simbólicas e de intenções. Em ambos, no entanto, o pensamento é uma coisa, e a obra é outra.

Há artistas que não gostam de explicar o que criam e há os que gostam. Contam os gatilhos que os levaram a fabricar uma obra. Courbet fala com orgulho das magníficas trutas que pescara e que representou na tela para exibir o seu feito. O que resultou, no entanto, foram quadros carregados pela presença da agonia e da morte.

Os criadores contam suas intenções: aqui pus este personagem e esta caixa porque quis representar o burguês capitalista (mais uma vez Courbet em seu "O Ateliê do Artista") ou tentei exprimir com o vermelho e o verde as terríveis paixões humanas, como dizia Van Gogh.

Tudo isso é fascinante e oferece chaves para a compreensão da gênese da criação, dos processos internos ao criador, daquilo que o levou a produzir. Mas não "explica" a obra, que se explica a si própria. Por meio de sua materialidade, a obra de arte se torna um ser pensante. Ela desencadeia ideias, emoções e conceitos de forma não verbal, mas igualmente poderosa.

Há um porém. O artista, sendo mãe ou pai da obra, possui uma enorme autoridade sobre ela. Nós imaginamos, e o artista também, que o criador "expressa" sua alma, seus sentimentos em sua criação. Como consequência, ele teria uma autoridade natural sobre suas pinturas, esculturas, gravuras. Essa concepção foi forjada bastante pelo romantismo: o gênio criador se mistura com sua criação.

O artista não expressa: ele fabrica alguma coisa que tem expressão própria. Quando explica sua obra, limita nossa percepção, que passa a ver como ele conta que deve ser vista. Com isso, tolhe a voz da obra, que sempre diz outra coisa, falando por si mesma por meio de uma comunicação que lhe pertence. Para ela, não importa muito o orgulho do pescador e de suas trutas nem se o artista viu no verde e no vermelho as mais terríveis emoções humanas. Importam as trutas, o verde e o vermelho que ela oferece aos nossos olhos.

O filósofo Paul Valéry, tão fino, tem uma frase nada elegante a respeito, mas que diz bem: "O autor é o responsável exterior, como o proprietário de um animal é responsável pelos acidentes causados por sua vaca".

Antonio Obá é um artista internacional de primeiríssima grandeza. A exposição "Revoada", na Pinacoteca do Estado, reúne 13 de suas obras, admiráveis e expressivas. O que escrevi antes me veio à cabeça a partir de um excelente dispositivo dessa exposição. Cada obra vem comentada pelo autor de maneira inteligente. O visitante acessa uma gravação por meio de um QR code posto ao lado das telas.

São comentários que falam dos gatilhos e das associações que fecundaram o espírito de Obá para inventar suas imagens e sua instalação. Os comentários são fascinantes e revelam um artista ligado à cultura africana, afro-brasileira e afro-norte-americana. Intenções muito sutis levaram-no a criar, e suas explicações mostram que sua mente é capaz de associar coisas para produzir coisas... que não se explicam.

Ele é um artista que, pela maestria pictórica, se insere entre os maiores. É fácil associá-lo à grande história da arte ocidental: seus quadros remetem fortemente a altas referências. Tecnicamente, seu modo de tecer luz e cor, seu sentido da evidência nas figuras, sua estratégia de composição revelam uma arte que passa pelo amor dos grandes mestres, e isso sem nenhuma subserviência.

Seus meninos negros voando em leque na ponta de uma chama luminosa fazem imediatamente pensar em "A Manhã", de Otto Runge: de modo expressivo, numa contraposição, essa obra de Obá se intitula "Angelus", —como o celebérrimo quadro de Millet— ou seja, o final da tarde. É fácil, e um pouco inevitável, associar suas piscinas com as de David Hockney; a comparação, porém, revela como são muitíssimo diferentes: nada de luminosidade californiana, mas uma água espessa de penumbra levemente inquietante, dada pela matéria pictural que sabe fundir, com um domínio perfeito, a cor e a luz.

'Angelus' (2022), de Antonio Obá
'Angelus' (2022), de Antonio Obá - Kunning Huang/Divulgação

As duas referências que fiz a Runge e a Hockney —e não é importante se o autor nelas pensou ou não e haveria também a lembrança de muitos outros— parecem-me interessante pelo contraste. Nas obras de Runge e de Hockney, há uma luminosidade solar intensa e uma inflexão para a felicidade espiritual ou erótica.

Em Obá, ao contrário, tudo é banhado por uma crepuscular melancolia (procuro, sem achar, uma palavra que seja mais forte que melancolia, mas que não chegue à tristeza). A informação contida em suas gravações explicativas que mais me marca é o tom melancólico de sua voz, combinando tão bem com seu mundo feito de serenidade triste. Em certas análises, o artista exprime sua intenção liberdade, de positividade, se não eufórica, pelo menos esperançosa, mas as obras, por seu ânimo grave, a desmentem.

A instalação que fez, com mãos dependuradas no alto da sala, é poética justamente porque estão onde as nossas não podem estar. Ao contrário de tantos personagens de Obá, somos condenados ao chão. De fato, em suas telas, a leveza é a propriedade das crianças: elas guardaram o sentido do voo permitido pela imaginação que ainda não se convenceu plenamente das limitações do real. Nós, adultos, nos conformamos com o desalento de não mais saber voar.

Creio que é melhor ver primeiro as obras de Obá sem saber nada a respeito delas. Deixar-nos invadir plenamente por seus mistérios e enigmas sem querer entender. A força que possuem nasce da poesia enigmática que emana delas. Depois, uma vez invadidos por esses poderes mágicos, aí sim, vale ouvir os comentários, que nos encaminham para um mundo de racionalidades.

Antonio Obá: Revoada

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