José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Os nós górdios da Folha

Jornal entra em conflito com seus profissionais em discussão sobre racismo

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A Folha celebra seu centenário, mas o jornal que conhecemos, o do Projeto Folha e do papel decisivo no processo das Diretas Já, começou bem depois, nos anos 1980, quando este diário se projetou como o mais importante do país. Sou de uma geração que assistiu adolescente a essa transformação e percebia a Folha como uma espécie de farol nas trevas de um país irrelevante, inculto e incompleto.

Seus princípios editoriais, fundamentais naquele momento de mudanças sociais e políticas profundas, ganharam corpo, mas tiveram que ser renovados com o tempo, ainda que alguns preceitos tenham sido apenas reiterados, como o da defesa intransigente da liberdade de expressão.

Na última atualização, em 2019, uma política de diversidade foi acrescentada. O jornal reconhecia "a importância de desenvolver um ambiente plural não só em sua Redação mas na empresa como um todo". "Tornando sua própria equipe mais heterogênea, a Folha espera ampliar os seus horizontes e diversificar também a sua base de leitores", dizia o documento. Assim foi feito, com a criação de uma editoria de diversidade, a contratação de colunistas e a realização de iniciativas como o programa de trainees para profissionais negros, já em sua segunda edição.

O preâmbulo histórico se faz necessário diante dos eventos ocorridos na última semana. A publicação de um texto de Antonio Risério, no sábado (15), provocou reações em cadeia e uma inédita crise no jornal. No espaço de poucos dias, uma carta assinada por quase 200 jornalistas da empresa contra a veiculação do artigo pela Folha vazou e foi tornada pública por um concorrente. A reação dura do diretor de Redação, noticiada em reportagem do próprio jornal, foi tomada como ameaça aos profissionais da casa e criticada sem meias palavras por um de seus colunistas.

Manifestação de jornalista contra o próprio jornal não é algo incomum na Europa e nos EUA. No Brasil, em geral, ocorre atrelada a disputas trabalhistas. É difícil, no entanto, encontrar algo parecido na história recente da Folha. Muitas disputas entre repórteres e redatores e o comando do jornal aconteceram, porém nunca de maneira tão explícita e ruidosa. O jornal adora abrigar uma polêmica, costuma-se dizer. A verdade é que ele próprio virou uma.

Ilustração de Carvall mostra cinco pessoas com forca no pescoço. São bonecos com cabeças bem redondas feitos somente com traços pretos sobre fundo branco. Os quatro primeiros aparecem com balões de diálogos em dentro deles, tipos de nós.
Carvall

Não precisava ter sido assim, a começar pela seleção do artigo. Se o jornal acha importante discutir a questão identitária, a ponto de voltar ao assunto reiteradamente, seria saudável variar os analistas. Risério não parece ser a única voz crítica ou a mais importante. Pelo contrário, vem se notabilizando como mero polemista, não apenas na Folha, mas também em outros veículos, como o Estadão, onde igualmente obtém espaço frequente.

Ainda que o autor fosse inevitável, não é preciso ser especialista para intuir quando um título vai dar problema ou, no caso, muito problema: "Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo". Tal tipo de conteúdo demanda antídotos de edição. O mais simples deles é publicar, simultaneamente, um artigo de oposição ou texto didático sobre o assunto —a era Bolsonaro e o negacionismo aplicado à pandemia tornaram essa prática ainda mais rotineira.

De volta aos princípios editoriais do jornal, como descrito no item sobre pluralidade, é preciso "registrar com visibilidade compatível pontos de vista diversos implicados em toda questão controvertida ou inconclusa".

O jornal fez isso nos dias seguintes, mas esse outro lado à prestação gerou acusações de ter montado uma estratégia por audiência. Quando um artigo provoca a publicação de muitos textos contrários por necessidade de equilíbrio, e foram vários desta vez, resta evidente o que se passou.

Em outubro, quando outro episódio em torno do antropólogo também provocou forte reação de colunistas e leitores, esta coluna advertiu que a dúvida não era mais se a Folha tinha colunistas e colaboradores racistas, mas se o racismo não estava no próprio jornal. "A Folha é racista?", título do artigo, foi uma das perguntas mais frequentes na caixa de entrada do ombusdman nessa última semana.

Indagava-se também se o jornal esperava algo diferente de uma Redação que a própria empresa faz força para tornar mais diversa. Parte de seus jornalistas está dizendo claramente que a ampliação de horizontes preconizada por seu projeto editorial em 2019 já é realidade. Outra percepção sobre o racismo parece o efeito mais óbvio desse processo.

Opô-lo simplesmente à liberdade de expressão é se deixar cair em armadilha, dessas que figuras como Bolsonaro adoram instalar em redes sociais.

Nós górdios, como se sabe, demandam reflexão e ocultam soluções simples depois de parecerem insuperáveis.

A Folha tem uns tantos para desatar. É preciso calma.

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