José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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A serviço da democracia

Folha precisa aderir aos manifestos da sociedade civil, não basta apoiar

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Parte importante dos leitores da Folha, a geração que experimentou os primeiros sinais de que uma democracia plena era factível no país, acostumou-se a ler um jornal ativista, engajado na campanha das Diretas Já. Não havia dúvida naqueles anos 1980. Era buscar a luz ou permanecer nas trevas. Inexistia questão partidária, o ponto era garantir a liberdade de expressão e o direito de votar para presidente. Foi a partir desse momento que a Folha se tornou o jornal mais importante do país. Não por relatar o que se via nas ruas, pois ainda havia quem tentasse esconder o que estava acontecendo, mas também por não ter receio de participar ou ser notada participando. Havia um sentimento público, cívico, impossível de ignorar. Era mais do que natural o jornal fazer parte de toda aquela empolgante confusão.

Há muito para se discutir sobre a trajetória da Folha desde então. A despeito de sua defesa intransigente de um jornalismo crítico, pluralista e apartidário, não foram poucos os episódios em que o jornal foi acusado de tomar lados ou encampar veladamente fenômenos como o da Lava Jato. O jornal se habituou a tomar pauladas vindas de todos os cantos. Para muitos, até alimenta isso, com doses calculadas de sensacionalismo. Em uma espécie de leitura esquizofrênica, a Folha consegue ser ao mesmo tempo petista e bolsonarista, libertária e conservadora, racista e identitária, o que o observador quiser ou conseguir enxergar em seus textos.

Essa sensação esquisita é reforçada por Primeiras Páginas como a de quarta-feira (3), onde uma chamada de entrevista com Almino Affonso, articulador da carta de 1977, é ladeada pelo extrato do colunista que classifica o manifesto da USP como eleitoreiro. O jornal faz ampla cobertura dos movimentos em defesa da democracia ao mesmo tempo em que dá destaque para visões obtusas. Tais concessões deixam marcas. Até hoje leitores lamentam, por exemplo, o espaço cedido a Fabio Wajngarten no Tendências / Debates no barulhento e golpista 7 de Setembro do ano passado.

A Folha, a um custo elevado, como já discutido por esta coluna algumas vezes, é coerente com seus preceitos jornalísticos ao expor ideias contraditórias. Deveria sê-lo também com sua história. O momento pede, como em 1984.

Não basta apenas apoiar, o jornal precisa subscrever, integrar formalmente os manifestos da sociedade civil que defendem as urnas eletrônicas e o respeito incondicional ao resultado das eleições, destratadas diuturnamente pelo presidente Jair Bolsonaro e por seus aliados, civis e militares, que insistem em naturalizar falas e atitudes subversivas.

Ilustração mostra coluna grega com pessoa sentada em cima. Ao redor dela, quase alcançando a pessoa, há um líquido marrom claro.
Carvall

Diante de "um chefe de governo que na opinião desta Folha há muito perdeu as condições de permanecer no cargo", como o jornal escreveu em editorial após o insólito encontro do mandatário com embaixadores, não há outra opção, também como em 1984.

Bolsonaro é uma ameaça desde antes da eleição, mas seu mandato foi além, degenerou o ambiente político, a relação entre os Poderes, um desastre. O jornal não ficou insensível ao processo. Em 2020, inclusive, lançou campanha em defesa da democracia, reeditou a faixa amarela das Diretas em seu cabeçalho, promoveu um concorrido curso sobre a ditadura e alterou seu famoso slogan. "Um jornal a serviço do Brasil" virou "Um jornal a serviço da democracia". O risco detectado há dois anos se consolida agora como perigo real e imediato. O jornal não pode se limitar a relatar, precisa participar, mais uma vez, como em 1984.

Questionada se a Folha pretende endossar algum dos manifestos, a Secretaria de Redação respondeu que o jornal publicou o editorial "Democracia Sempre", há uma semana, em que defende os manifestos. Disse ainda que a Associação Nacional dos Jornais, entidade setorial da qual a Folha faz parte, publicou seu próprio documento em favor da democracia e da liberdade de expressão; e que vem dando visibilidade em reportagens aos movimentos da sociedade civil.

Sobre a eventual participação de seus profissionais nos manifestos, afirmou que, no fim de julho, em comunicado interno, a Direção de Redação declarou não haver óbices a quem quiser assinar a carta da USP. "A Direção entende que neste caso não se trata de manifestação partidária", algo que é vedado pelo Manual da Redação, "mas da enunciação de princípios comuns de convivência civil".

Faria alguma diferença então a Folha aderir formalmente ao documento elaborado pelos ex-alunos da São Francisco ou ao capitaneado pela Fiesp? Nos tempos atuais, onde tudo precisa ser explicado, reiterado, sublinhado, é claro que sim. Mais importante, faria diferença para aquela geração de leitores que viu o país mudar junto com a Folha.

Se há 38 anos foi o que surpreendeu o público, agora é só o que se espera deste diário.

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