José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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O país que reflete Bolsonaro

Enxergar as mazelas do governo é encarar o Brasil que não se quer ver

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"Parecia um boto se exibindo." Assim é retratado o presidente da Caixa Econômica Federal na piscina. Como escreveu Reinaldo Azevedo, o governo Bolsonaro é tão absurdo que lhe falta verossimilhança. O momento flipper talvez não passasse na análise desse roteiro de filme B que é o país. A frase relatada à Folha certamente sim: "Estou com vontade de você". Nem um ser mitológico, na água ou no escritório, pode falar de jeito tão nauseante.

É incrível Pedro Guimarães, pela ficha corrida escancarada na última semana, não ter sido denunciado antes. Durou três anos e meio, quase todo o mandato de Jair Bolsonaro, de quem é sorridente entusiasta, abaixo do radar da imprensa. Será? Uma colega de Brasília diz que alguns casos eram conhecidos, mas que não havia comprovação ou meio de contá-los. Nas vezes em que enfrentou jornalisticamente o boto, nada de abraços, apenas confrontação, ameaças de processos e grosserias em geral.

Se não era apenas pelos corredores da Caixa que corria a má fama, por que demorou tanto para o país saber mais sobre quem cuidava da maior instituição bancária pública da América Latina? Difícil precisar. A pressão eleitoral de agora talvez tenha ajudado. Caixas de pandora estão sendo abertas por todos os cantos do país, contra atuais e antigos governantes e políticos. É uma explicação razoável, afirma a colega, que apresenta, no entanto, hipótese mais plausível: alguém enfim teve coragem de denunciar, talvez prenunciando uma mudança de governo e uma chance menor de sofrer retaliação. Afinal, antes de uma história política, o episódio é o cotidiano de muitas trabalhadoras neste país de cabras-machos.

Segundo O Globo, o histórico de Guimarães é antigo, remonta a 2004. Tentou beijar uma funcionária na frente de várias pessoas durante uma festa de fim de ano do Santander, mas foi demitido pelo baixo desempenho profissional. Passou por outras instituições e chegou ao governo guindado por Paulo Guedes sem que seu comportamento tenha sido percebido. Ou, possibilidade ainda pior, talvez com o perfil de abusador tolerado. Uma trajetória facilmente detectável se a barra estivesse mais alta, como ocorre com outra frequência no exterior civilizado, seja no mundo corporativo seja no serviço público.

Lá e aqui a imprensa é apenas o último filtro.

Ilustração de Carvall em traços pretos mostra um óculos em primeiro plano, com um teste de visão, com letras, ao fundo
Carvall

Gangorra

Entre todas as baterias da grande mídia voltadas contra o governo Bolsonaro e suas inúmeras mazelas, a revelação sobre os assédios de Pedro Guimarães coube à coluna de Rodrigo Rangel, do Metrópoles. O site brasiliense, de propriedade do senador cassado e condenado Luiz Estevão, já é um dos mais lidos do país com menos de sete anos de estrada.

O portal tem um funcionamento curioso, transitando com desenvoltura tanto nos meandros políticos da capital federal como no universo mundano de celebridades e cliques. Isso explica saltar do mau jornalismo ao furo em poucos dias da semana passada: o site, tal como um tabloide britânico, invadiu a privacidade da atriz Klara Castanho (em texto despublicado logo depois com pedidos de desculpas do autor e da diretora-executiva), episódio de imensa repercussão negativa, para, 48 horas mais tarde, pôr no ar a paulada em Guimarães.

Duas reportagens tão díspares em torno de mulheres saindo da mesma Redação. Roteiro de filme B foge mesmo à lógica.

Drive to survive

Thiago Amparo comentou em sua coluna a manchete da Folha sobre a primeira queda na taxa de letalidade da polícia em oito anos, uma das conclusões do anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A matança caiu 4%. Como números provam qualquer coisa, Eduardo Bolsonaro declarou que a explicação estava na maior quantidade de pessoas armadas, reforçando a falácia bolsonarista de faroeste importada dos EUA.

A violência caiu, na verdade, apenas na "Suécia" que existe dentro do país, segundo a descrição de Amparo (confesso que sou do tempo da Bélgica, a parte rica da Belíndia de Edmar Bacha). Entre os brancos, a queda da taxa foi de 31%. No "lado sírio", outra descrição sua, a letalidade da polícia contra os negros aumentou 5,8%. O que é mais notícia, a letalidade policial cair no geral ou aumentar contra a população negra? A perspectiva é importante neste país de racistas.

Talvez alguém tenha lido este último parágrafo e reclamado íntima ou abertamente que a vida está cada vez mais chata diante de tantas ponderações. Aí é recomendável a leitura de outra coluna da semana, a de Djamila Ribeiro, sobre o tricampeão Nelson Piquet ter chamado o heptacampeão Sir Lewis Hamilton de "neguinho", em uma entrevista do ano passado resgatada de alguma caverna pelas redes sociais.

Não há equivalência possível entre chatice e violência. O Brasil é um filme ruim.

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