"Quem sabe um olhar estrangeiro contribua para nos proteger de nós mesmos", escreveu Reinaldo Azevedo sobre os "extremistas de centro", que "cultivam, às vezes, um idealismo rancoroso". Comentava sobre o "positivo" da S&P para a perspectiva de longo prazo do Brasil. A agência de avaliação de risco é o sinal da vez. Nos noticiários econômico e de relações internacionais, a percepção externa parece bem diferente da que é martelada pela mídia nacional nestes primeiros seis meses de Lula 3.
Curioso é notar que a análise vinda de fora sobre a mídia em si não incomoda. Nosso viralatismo é um tanto seletivo.
Na semana que passou, um novo número do Relatório de Mídia Digital do Instituto Reuters, pesquisa anual e gigantesca sobre o setor, com mais de 93 mil consumidores de notícias ouvidos ao redor do planeta, mostrou que diminuiu de 54% para 41% o número de brasileiros que evitam informações "depressivas". Entre as tendências mundiais, crescimento do TikTok, decadência do Facebook e renovados desafios para uma indústria que pena para se adaptar à absorção fragmentada de notícias por nativos digitais já adultos.
O principal fato desta edição, no entanto, não saiu das páginas do relatório. Maria Ressa, prêmio Nobel da Paz de 2021 e uma das grandes vozes do jornalismo ativista mundial, crítica de primeira hora das grandes empresas de tecnologia, afirmou que o estudo tem metodologia falha e põe a imprensa independente sob risco, notadamente no sul global.
Revelou ainda que, no ano passado, abriu mão de um assento no conselho do Instituto Reuters, ligado à Universidade Oxford, responsável pelo estudo, à espera de mudanças no trabalho. Como elas não vieram, resolveu vir a público.
O Rappler, o site de Ressa nas Filipinas, razão de sua láurea e também de vários pedidos de prisão, aparece como o menos confiável entre os analisados pela pesquisa em seu país. Tal retrato, segundo a jornalista, é influenciado pelas campanhas de desinformação dos governantes locais, que inclusive usam o resultado como argumento contra ela. A metodologia não leva isso em consideração, tampouco o viés resultante do controle quase absoluto das redes sociais na distribuição de notícias. O relatório, registre-se, é parcialmente financiado pelo Google.
Os responsáveis pelo instituto reconhecem parcialmente as limitações e lamentam o uso dos resultados para prejudicar a ativista e seu projeto.
"Não estamos sozinhos. Esse ‘estudo’ é como dar uma arma carregada para governos autocráticos que tentam silenciar jornalistas independentes não apenas nas Filipinas, mas em países como Brasil e Índia, onde operações de informação e lawfare são usadas para perseguir, ameaçar e desmobilizar", declarou Ressa ao jornal britânico The Guardian.
A menção ao Brasil, por óbvio, está atrelada à memória dos anos Jair Bolsonaro, ainda que o jornalismo, em boa parte deste país, se mantenha como atividade de alto risco. É interessante de qualquer forma conferir o que a tabela de "confiança" contestada por Ressa mostra no caso brasileiro.
SBT, Band, Record e jornais locais seriam as marcas com mais menções de "confiáveis"; Globo, O Globo, Folha, Veja e O Estado de S.Paulo seriam as com mais menções de "não confiáveis". Com a devida vênia dos colegas envolvidos, é preciso fazer força para não se lembrar dos alertas de Ressa.
Tudo isso, no entanto, não parece ser problema por estes lados. Das manifestações públicas sobre o estudo, a maior parte era de aspectos positivos, como a do pessoal do podcast O Assunto, do Grupo Globo, citado no relatório como o mais popular do país. Em que pese a omissão do rival Café da Manhã, parceria da Folha com o Spotify, que não publica números de audiência.
Se números particulares pouco incomodam, a curva geral de confiança no noticiário deveria chamar a atenção dos veículos do país. De 62% em 2015, chegamos a 43% em 2023, o menor patamar do período analisado. A primeira grande queda, para 48%, se deu em 2019, início do bolsonarismo no poder e de sua pancadaria contra a mídia. Após certa reação nos anos da pandemia, quando informação era questão de vida ou morte, o ano eleitoral de 2022 derrubou a confiança de volta para 48% e para 43% agora. Se serve de consolo, estamos alcançando o patamar de países desenvolvidos.
"A crítica ao jornalismo é alta no Brasil, com quase dois terços dos entrevistados frequentemente ouvindo ou vendo pessoas visando a imprensa, em linha com o cenário de confiança declinante e alta polarização", comenta o estudo.
Talvez seja inútil pedir para a mídia nacional ter os pruridos de Ressa. Seria prudente, no entanto, não creditar a latente crise de confiança apenas ao olhar estrangeiro.
O vício que a jornalista aponta e a cadente credibilidade são sintomas da mesma doença.
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