José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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A hora dos dinossauros

Modelo de negócio e inteligência artificial emparedam jornalistas e veículos

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O "furo do ano, talvez da década", na avaliação do Semafor, site de Ben Smith, o mais celebrado analista de mídia da atualidade, foi publicado em janeiro por uma agência de jornalismo investigativo da Alemanha. O Correctiv trouxe à luz uma reunião do AfD, partido de extrema direita do país, com grupos neonazistas e simpatizantes endinheirados, realizada em novembro, em um hotel de Potsdam. O encontro, revelou a apuração, discutiu fundamentos e viabilidade de um plano de "reimigração".

A ideia era mandar para algum lugar do norte da África imigrantes, cidadãos alemães e outros que não se encaixassem em critérios raciais estabelecidos por um comitê que viria a ser criado. Milhões de pessoas. Algo inimaginável em qualquer lugar do mundo e especialmente na Alemanha por motivos óbvios. Uma afronta à Constituição germânica em ao menos quatro pontos. Um escândalo, estopim de uma onda de protestos que há muito não se via pelo país e que já custou uma eleição regional ao AfD, onde antes era favorito.

O debate atual é se a legenda pode ser extinta, passo óbvio e complicado. Como definir se alguém que tenha discutido, planejado e promovido a subversão de militares para dar um golpe de Estado realmente tentou dar um ou apenas avaliava as possibilidades.

Para registrar o encontro, o Correctiv lançou mão de dezenas de repórteres, um quarto caro no hotel, câmera escondida em relógio e até uma balsa disfarçada (a janela da sala de reunião dava para um rio).Com a história na mão, antecipou dados para outros veículos de imprensa, em franca estratégia de divulgação.

Parece coisa de jornalão, mas o Correctiv é na verdade uma agência sem fins lucrativos, sem anúncios, sem assinatura ou paywall. Vive de contribuições individuais e de entidades. Desenvolve projetos de jornalismo local e letramento em mídia digital para não jornalistas, entre outros. Um site ativista, algo fora da curva, há dez anos escapando dela.

Um personagem com expressão contrariada e um lápis na orelha olha para o leitor e fala: "não sou um robô". O fundo é marrom texturizado.
Carvall

Do outro lado do Atlântico, a revista The New Yorker questiona em ensaio se a "mídia está preparada para a extinção". Na ilustração, feita por gente, grandes marcas da imprensa americana representadas como dinossauros observam o meteoro cair na Terra. Qualquer jornalista se sente um tanto jurássico ao fim da leitura.

O arco de transformação do negócio é conhecido: jornais viviam de classificados e anúncios na era do papel, passaram para os assinantes no começo da era eletrônica e agora se acotovelam com todo tipo de concorrência na internet. The New York Times, paradigma do setor, tira parte importante de sua receita de conteúdo não noticioso, como receitas culinárias, testes de produtos e passatempos. Existe apenas um Times, porém.

Afunda agora nos EUA quem se deixou à mercê das redes sociais, que cada vez mais esnobam notícias. O próximo tranco virá dos buscadores, quando a inteligência artificial começar a gerar respostas próprias e abdicar das fontes de informação. Aí a saída inteligente será cortar gente das Redações apelando para a mesma solução sintética. Não é preciso muita imaginação para perceber aonde isso vai dar.

Aperitivos dos novos tempos sobram por aqui. A cobertura televisiva do Carnaval, com poucas câmeras e repórteres, fez a Globo apanhar do público e da crítica. Um texto mal traduzido por IA na Folha ensejou importante alerta na coluna de Sérgio Rodrigues. Foto de divulgação de Lula e Janja nas pirâmides do Egito transformou a Primeira Página do jornal em álbum de família. E, é claro, a última capa de Veja, supostamente criada por IA, em que uma mão foi desenhada com seis dedos.

Talvez o jornalismo ativista seja para poucos. Do jeito que a coisa vai, no entanto, resta saber qual jornalismo não será.

Eventualmente

Leitora pergunta, diante da polêmica sobre traduções, se a Folha não vai informar que a produção desses textos tem auxílio de inteligência artificial. Assim faz O Estado de S.Paulo, por exemplo. A Secretaria de Redação responde: "O crédito de tradução atribui um trabalho humano. A Folha não credita ferramentas utilizadas na produção de material jornalístico, tais quais mecanismos de busca na internet, softwares de planilhas, equipamentos de gravação ou de transporte. Como todo uso de inteligência artificial pela Redação é, de praxe, revisado por jornalistas, ele retém essa condição de ferramenta". IA não é gravador. Um pouco de transparência não faria mal ao jornal. Ao menos neste início de ladeira.

Entrevista

A pedido do jornal, a publicação da entrevista com o diretor de Redação, Sérgio Dávila, foi adiada para o dia 25 de fevereiro. O ombudsman agradece aos leitores que enviaram perguntas, críticas e sugestões por ocasião do aniversário da Folha, que completa 103 anos nesta segunda-feira (19).

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