José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Desistir, verbo intransitivo

Série incomum da Folha sinaliza certa renovação em meio a formatos antigos

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No último domingo (28), o jornal americano The Boston Globe estampou em sua Primeira Página um título elegante em capitulares: "Dying on Lynda’s Terms", morrendo nos termos de Lynda. Na foto, em cinco colunas, o marido se emociona ao colar o rosto no de Lynda, acamada, no amanhecer do dia em que ela vai morrer. Lynda Bluestein, 76, enfermeira aposentada com câncer terminal, levou meses para conseguir um suicídio assistido em Vermont, pois seu estado natal, Connecticut, proíbe a prática.

A reportagem é uma descrição desses meses com médicos, advogados e angústia. Começa com a chegada a Vermont, na véspera da data marcada, "após uma viagem que pareceu que nunca acabaria", um lide engenhoso que parte do banal para sugerir alívio. A matéria ganha outros contornos, porém, pois acompanhada de uma nota da editora-executiva: o autor do texto, Kevin Cullen, se envolveu pessoalmente com a história que narrou, falta grave em qualquer manual de ética jornalística, mas ainda assim o Globe decidiu bancar a publicação.

Integrante do time do jornal que ganhou o Pulitzer em 2003 por denunciar abusos sexuais dentro da Igreja Católica (episódio retratado no filme "Spotlight", de 2015, vencedor de dois Oscars), Cullen assinou um documento, durante a apuração da reportagem, atestando que Lynda tinha plena consciência do que fazia quando pediu a eutanásia. A lei em Vermont exige que duas pessoas que não sejam da família e não tenham relação com o processo sejam testemunhas da sanidade mental do solicitante diante de ato tão grave. O jornalista não explicou por que cruzou uma fronteira tão óbvia da profissão.

Relatar alguém abrindo mão da própria vida com a dignidade possível não é tarefa simples. Envolver-se emocionalmente com o fato é mais do que perder a objetividade, é torná-lo pessoal, transferir para si uma questão que não é sua. Cullen se tornou a notícia, talvez até guiado por compaixão, mas a história era só de Lynda.

Nela se percebe um extremo do exercício de desistir, tema, por coincidência, de uma série incomum que a Folha publica desde meados de janeiro. Desistir de coisas difíceis, notadamente da ideia até aqui generalizada de que não continuar implica fracasso.

Um jovem de costas escreve a palavra desisto como um grafite sobre um fundo marrom.
Folhapress

Tem a ver com saúde mental, tanto que uma das primeiras reportagens fala de Simone Biles (uma pena o foco não ter ido para Naomi Osaka, a primeira a chutar o balde no cruel esporte de alto rendimento), tem a ver com os chavões da sociedade (faculdade, trabalho, amor romântico etc). Tem a ver com uma geração mais aberta à discussão, que prefere ter consciência das próprias limitações, não escondê-las.

Talvez soe como autoajuda, item que sobra na Folha, nas livrarias e nas redes sociais. A diferença está na radicalidade da proposta, nada prosaica, refletida não apenas em uma pauta, mas em uma família de reportagens. Ideia que há alguns anos não passaria pelo crivo de muitos editores, de gerações anteriores, como a deste ombudsman, em que desistir era quase sempre covardia. É bom sinal, sinaliza certa renovação do produto. Ou que a ousadia, marca de projetos históricos deste jornal, pode tomar formas distintas.

Curiosamente, a série "Eu desisto" brota de outra iniciativa da Folha, o Todas, que vincula "conteúdo voltado para mulheres" com uma campanha de assinaturas. A descrição tem um ar de revista feminina dos anos 90, mas uma passada no cardápio do site revela assuntos de interesse e boas reportagens. Razões comerciais parecem fazer o jornal insistir em certos formatos, como o das séries, algumas interessantes, outras nem tanto. Boas ideias prevalecem, desde que os formatos não atrapalhem.

Face, 20

A rede social completa duas décadas neste domingo (4) com muitas reportagens, polêmicas e contas a pagar. Uma delas apareceu na mesa de Mark Zuckerberg, na quarta-feira (31). Os barões da alta tecnologia eram inquiridos no Senado dos EUA sobre o estrago das redes sociais em crianças, quando o chefão da Meta foi instado a se dirigir às famílias presentes à audiência. Pais e mães mostravam fotos de filhos que perderam para o bullying patrocinado pelos algoritmos. Zuckerberg se levantou e, muito constrangido, pediu desculpas. Imagem e manchete dos grandes jornais americanos no dia seguinte, a notícia não chegou ao impresso da Folha e virou nota no site.

Folha, 103

No próximo dia 18, véspera do aniversário de 103 anos da Folha, a coluna do ombudsman, em edição especial, trará uma entrevista com o Diretor de Redação do jornal, Sérgio Dávila. Os leitores ficam convidados a enviar questões, assim como críticas e sugestões, através do email da seção, ombudsman@grupofolha.com.br. Só não vale perguntar se a Folha "endireitou". Essa já está na lista.

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