José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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José Henrique Mariante

O golpe, versão do diretor

Imprensa deveria ser literal sobre o delicado momento institucional do país

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O mundo não vai acabar em três anos, assegurou a Folha na última semana, diante de postagem em rede social fora de contexto, como tantas, que viralizou por sugerir um prazo exíguo para o juízo final. As razões do jornal para o esforço de esclarecimento, ainda que sob certo risco de ridicularização, são nobres e explicadas em nota ao fim desta coluna. Por enquanto e para a análise a seguir, é suficiente constatar que o noticiário destes tempos se obriga a ser tão literal quanto o possível, pois a audiência em geral não consegue mais raciocinar. Ou não quer.

Foi preciso explicar que havia um golpe em gestação no ano eleitoral de 2022. Que o então presidente Jair Bolsonaro e aliados disseminavam um discurso fantasioso de fraude nas urnas eletrônicas e conspiração para tirá-lo do poder. Na verdade, sabia-se antes e reitera-se agora, quem conspirava era o próprio, com a ajuda de ministros civis e militares, assessores, palavrões e português ruim. A três meses do primeiro turno, um dos generais brada que a hora de dar soco na mesa ou virá-la era antes do pleito. Assim aparece no vídeo da reunião, aquela que não estava sendo gravada, garantiu Bolsonaro aos presentes.

Um mês depois, parte da elite brasileira, esta Folha inclusa, ainda que não tenha se lançado nominalmente em campanha, mas pela extensa cobertura, manifestou grande preocupação com o cheiro de queimado que exalava de Brasília. No Largo São Francisco, a sociedade civil desenhou para Bolsonaro e para sua claque golpista que a Constituição tem mais do que quatro linhas.

O período eleitoral foi conturbado, e o espectro golpista se materializou no 8 de Janeiro. As instituições funcionaram, mas a que custo, insinuam as últimas revelações, ainda é uma história a apurar.

A cobertura da imprensa é intensa. Pela primeira vez, um repórter do Jornal Nacional repete o "cagão" usado por outro general para se referir a um terceiro em rede nacional. Os editoriais dos grandes jornais abdicam do vernáculo bolsonarista e, em comum, acendem alertas para a atuação heterodoxa de Alexandre de Moraes. O Estado de S.Paulo lembra a traumática experiência da Lava Jato. A Folha, que levou dois dias para opinar sobre o tema, escreveu que a acusação cabe à Procuradoria. O Globo disse tudo isso também, mas deu título e peso ao que primeiro interessa: em uma democracia, a acusação mais grave é a de golpe de Estado. Se é preciso ser literal, então é isso.

Um homem vestido com paletó e gravata, sentado e lendo um jornal. Na primeira página do jornal, há uma foto destacada de um bueiro. Ao lado direito do homem, há um bueiro com características semelhantes àquele da foto. O fundo é descrito como marrom e texturizado.
Folhapress

Ninguém duvida do caráter disfuncional do país. O inquérito que nunca acaba na mão do ministro do STF é um grande complicador, assim como a constatação de que, entre golpistas e legalistas, não deveria haver tropa tolerante. Ocorre que tudo isso deriva de um cada vez mais evidente movimento de subversão, algo absolutamente inédito para as gerações que não viveram ou não se lembram de 1964 ou do período da ditadura. Não é corriqueiro acordar com a notícia de militares sendo presos ou manchetes sobre golpe, tramas e conspirações. O momento é delicado, e os jornais, que tanto se preocupam em ser literais para um público malhado por notícias falsas, não deveriam se conter na descrição do que está acontecendo.

É um equívoco limitar o debate a qualquer dos aspectos do problema ou entendê-lo como uma disputa partidária. É um erro minimizar os atos de Bolsonaro pelo aparente improviso. Escapamos por pouco de uma turma de malucos, deveríamos estar discutindo como desestimular os próximos.

It’s the end of the world

"Mundo não vai acabar em 3 anos, ao contrário do que diz post com fala de drag queen fora de contexto." Sim, a Folha publicou esse título na semana passada. Uma influenciadora discutia a crise climática em videocast e, em determinado ponto, disse que o mundo fracassaria se o curso da história não fosse alterado. A fala cortada viralizou a ponto deste jornal achar necessário explicar que o planeta ainda tem muita lenha para queimar.

Em crítica interna, o ombudsman observou que o enunciado, um dos mais sensacionais na história centenária da Folha, ganharia algum senso crítico com um toque de humor, algo como "Não, o mundo não vai acabar em 3 anos...".

Luisa Alcantara e Silva, jornalista que representa a Folha no Comprova, consórcio de veículos de imprensa que combate fake news, não recomenda a estratégia. "Temos que ser literais ao contradizer uma notícia falsa para afastar a chance de reforçá-la. Quem acreditou na postagem pode entender o humor como menosprezo", afirma. "Pode soar inusitado, mas há crenças de todo tipo, Terra plana, Lula votou em Bolsonaro. Que o mundo vai acabar é só mais uma."

O jornalismo fica cada vez mais travado. Conforme as instruções da Luisa, então: armaram, tentaram e vão tentar de novo o golpe se não formos literais em sua condenação.

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