José Manuel Diogo

Diretor da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Brasileira, é fundador da Associação Portugal Brasil 200 anos.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

José Manuel Diogo
Descrição de chapéu Mercosul União Europeia

Novo mandato de Lula é grande oportunidade para Brasil, Portugal e Europa, diz Durão Barroso

Ex-premiê luso e ex-presidente da Comissão Europeia diz ver condições políticas para concretizar acordo União Europeia-Mercosul

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

José Manuel Durão Barroso já foi tudo o que um político pode querer ser. Revolucionário de esquerda, governante de direita. Negociador da paz. Chanceler e premiê de Portugal. Presidente da Comissão Europeia e presidente não executivo do Goldman Sachs International, um dos maiores bancos do mundo.

Hoje, entre conferências internacionais e programas de mentoria global, preside a assembleia-geral da diáspora lusa e dirige a Aliança Global das Vacinas, a Gavi, tarefas que desempenha sem qualquer remuneração e que lhe permitem continuar a ter uma ação global.

Os dez anos que passou dirigindo os destinos executivos da política europeia, entre 2004 e 2014, fazem dele —à semelhança de António Guterres, também ex-premiê luso e atual secretário-geral da ONU— um dos falantes da língua portuguesa com maior influência no cenário internacional.

José Manuel Durão Barroso durante cerimônia na qual recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Brasília
José Manuel Durão Barroso durante cerimônia na qual recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Brasília - Sergio Lima - 18.jul.14/Folhapress

Tem uma relação íntima com Brasil inscrita em seu DNA —o pai, Luís António Barroso, nascido no Rio em 1922, ano do centenário da Independência, foi cidadão brasileiro ainda antes de se tornar português —e o ex-premiê luso visita regularmente a família que lá mora. "Pelo menos uma vez por ano", afirma.

Barroso é muito otimista. Diz acreditar que, com o regresso de Lula (PT) ao Planalto, o que começou sendo feito duas décadas atrás na relação do Brasil com Portugal e Europa pode agora ser concluído, com a chance de dar origem a uma nova centralidade na geopolítica internacional.

Essa entrevista aconteceu em Lisboa, nesta terça (3), numa mesa do Cícero Bistrot —o mesmo restaurante que acolheu o presidente Lula e sua comitiva na visita a Portugal no dia 19 de novembro de 2022.

Ela fará parte de uma série de conversas em que, nessa icônica mesa do Cícero, personalidades incontornáveis "de lá e de cá" vão debater ideias, trocar argumentos, antecipar as tendências do futuro e compreender o potencial existente nas relações do Brasil com Portugal, a Europa e o mundo.

Como é que Lula pode influenciar a relação entre Portugal e o Brasil? Vejo neste novo mandato do presidente Lula uma grande oportunidade para relançar as relações entre Portugal e Brasil, mas também entre Brasil e Europa. Não procuro comentar a política interna brasileira. No entanto, parece-me que a relação entre os dois países, nos últimos anos, não foram as melhores. Não é que houvesse problemas.

Não havia uma verdadeira relação institucional entre os dois países. Exatamente. Nem com a Europa. Essas reuniões de cúpula periódicas, que eu instituí e das quais participei em várias com o presidente Lula e a presidente Dilma, ficaram, nos últimos anos, no "freezer", por assim dizer. Espero que tudo isso volte. O Brasil é, de fato, uma das mais importantes economias do mundo, e para nós, em Portugal, tem significado muito mais do que econômico. O meu desejo é que o Brasil volte a ser prioridade para a Europa e que a Europa volte a ser prioridade para o Brasil. Para Portugal, esse renovar de relação deve-se traduzir numa oportunidade de concretizar realizações econômicas, políticas e culturais.

Quando, há 20 anos, o presidente Lula tomou posse pela primeira vez, a visão que os dois países tinham um do outro é completamente diferente da que têm hoje. O mundo mudou. Hoje, no Brasil, se dá muito mais valor a Portugal do que antes. A relação era nostálgica, mas distante. No entanto, hoje em dia os brasileiros são a maior nacionalidade estrangeira em Portugal.

Ele escolheu Portugal para a sua primeira "visita de Estado" mesmo antes de ser empossado... Havia uma cumplicidade entre os dois países na primeira passagem de Lula pela Presidência. Esta cumplicidade traduzia-se em agendas partilhadas pelas duas nações. Uma delas era o acordo Mercosul. Falei muitas vezes com Lula sobre isso. Tanto o presidente como o Brasil queriam o acordo União Europeia-Mercosul.

O Mercosul é a maior pedra no sapato entre o Brasil e a Europa? A verdade é que, naquela altura, a dificuldade maior vinha da Argentina. Lula queria o acordo, mas não queria deixar a Argentina isolada nem fazer muita pressão sobre o governo argentino. Aqui na Europa, devido à sua produção agrícola, nem todos os países partilhavam o mesmo entusiasmo. Hoje a situação é diferente, até pela posição, já manifestada pelo presidente Lula, em relação à Amazônia. Parece-me que há condições políticas para relançar o acordo União Europeia-Mercosul.

Desta vez o acordo vai ser mesmo realidade? Estive em Bruxelas há algumas semanas e posso confirmar que existe no seio da UE essa vontade. As motivações dessa vontade até me parecem ser, em primeiro lugar, geopolíticas. Estando o mundo mais fragmentado que nunca, por causa desta terrível Guerra da Ucrânia, é preciso mostrar que, neste mundo partido, dois continentes como a Europa e a América do Sul podem dar as mãos e trabalharem. Não apenas em termos regionais. Europa para os europeus e América do Sul para os latino-americanos. Precisamos de casos de sucesso de cooperação internacional. Até para demonstrarmos que não estamos condenados a que cada um se feche no seu próprio silo geográfico.

O que é preciso fazer para dar início ao processo? Sendo português, vou tentar não exagerar o nosso papel. Mas, tentando ser objetivo, parece-me óbvio que Portugal é importante em todo esse processo. Portugal tem uma relação especial: os afetos também contam. Não só a dimensão. Às vezes, os cínicos da realpolitik defendem a ideia de que tudo o que rege a política são os interesses, mas não é verdade. Lembro a questão de Timor-Leste. Toda a gente nos dizia que a causa de Timor era uma causa perdida. "Timor fica do outro lado do mundo"; "a Indonésia é a maior nação muçulmana do mundo, como é que vocês esperam conseguir a independência de Timor-Leste?"

A verdade é que foi possível. Não foi só Portugal. Foram, em primeiro lugar, os timorenses. Mas com o apoio dos países de língua oficial portuguesa. Não sou ingênuo, é óbvio que os interesses são fundamentais na política. Mas há também afetos, paixões e afinidades que condicionam a forma de fazer política e influenciam resultados que não têm explicação de outra forma. É sobre esse prisma que Portugal poderá ter um papel importante na relação entre Europa e Mercosul.

Está a dizer que Portugal pode ter uma posição de liderança no processo de implementação do acordo do Mercosul com a União Europeia. Conheço bem este governo [de Portugal]. Ele quer ter um papel importante nas relações da Europa com o exterior e deseja participar no estabelecimento de um acordo como o Europa-Mercosul. A Comissão Europeia, com quem estive há pouco tempo, também quer o mesmo. O presidente Lula, se não tiver mudado de opinião, também quer o acordo.

O que se pode fazer agora? Na primeira cimeira [a acontecer no mês de abril em Lisboa], haverá equipes de negociação que têm de sublinhar as dificuldades existentes e começar a trabalhar para ultrapassá-las. Vai ser uma negociação muito difícil. O Itamaraty é composto por gente muito competente e muito dura de negociar [pausa para risos nervosos], mas no final iremos chegar a um acordo. Sendo que a União Europeia também não é fácil de negociar, para 27 países o acordo não é fácil. Mas acredito que vai ser desta vez. Isso seria muito bom para o Brasil, para a Europa, para Portugal e para a ordem internacional.

Criaria um novo sentido para essa ordem internacional. É como se criassem novas pontes transcontinentais. Exato. Até porque existe uma ameaça real. Tenho usado a expressão: a regionalização é o novo fenômeno da globalização. Temos uns EUA cada vez mais focados em si próprios. Apesar de a Europa ter um bom entendimento político com Joe Biden, as políticas protecionistas, que começaram no governo Trump, ainda hoje não desapareceram por completo da política externa americana.

Sem esquecer China e Rússia. Na China o caso ainda é mais grave, sendo que na Rússia a situação é trágica. A Europa pode cair na tentação de se fechar, e a América Latina fazer o mesmo. Neste contexto, seria ótimo que houvesse ao menos um grande caso de sucesso. Seria o elo Mercosul-União Europeia.

Falemos agora mais detalhadamente sobre o prisma da relação Portugal-Brasil. Nunca houve tantos brasileiros a viver em Portugal. Falando-se de 500 mil a 700 mil e estimando-se que ainda possa crescer mais. É preciso cuidar de quem vem mais, no entanto, ouvem-se muitas queixas da incapacidade que o governo português tem para processar a procura que o próprio país criou. Esse é um mal por resolver que existe na administração portuguesa. Mas não afeta só brasileiros, também afeta portugueses. Eu próprio, há dias, como presidente da Assembleia-Geral do Conselho da Diáspora Portuguesa, fiz publicamente uma crítica a isso. Os serviços consulares, por falta de meios, não prestam os serviços que deveriam prestar. Mas os brasileiros em Portugal não estão sozinhos. Os próprios portugueses que vivem no estrangeiro têm o mesmo problema: seja para importar um carro ou mudar de residência.

Mas é preciso resolver esse problema, ele representa um risco grande para a imagem de Portugal. Essas situações devem ser levadas ao conhecimento das autoridades, da diplomacia, das forças da própria sociedade civil e dos brasileiros que vivem em Portugal. Hoje em dia é praticamente impossível andar em Lisboa, ir a um restaurante, pegar um táxi —viver normalmente em sociedade— sem estar sempre a encontrar brasileiros: isso é uma mudança total. Quando, há 20 anos, o presidente Lula ganhou pela primeira vez e veio cá [a Lisboa] e eu o recebi enquanto primeiro-ministro, não era assim.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.