José Manuel Diogo

Diretor da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Brasileira, é fundador da Associação Portugal Brasil 200 anos.

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Brasil soube se descolonizar ao se apropriar da língua portuguesa, diz Isabel Lucas

Autora de 'Viagem ao País do Futuro' refuta ideia de idioma puro e celebra intercâmbios com Portugal

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Quando cheguei a Florianópolis, destino de muitos imigrantes portugueses dos Açores —e que lá se dizem "manezinhos"—, minha anfitriã, alegando a proximidade da ilha de Santa Catarina com Portugal, mostrou-me um áudio com a "língua" que os habitantes do antigo Desterro do reino lá falam: o manezês.

Em 2001, em uma das primeiras vezes que vim ao Brasil, algo de semelhante aconteceu. No caminho para Fortaleza, em uma paragem num posto de gasolina, logo me encantei por um pequeno e apócrifo opúsculo que dava a estampa pelo pomposo e pretensioso título "Dicionário de Cearense". Agora como então, a forma escrita pedia espaço à oralidade tentando um lugar ao sol no cardápio da língua.

A jornalista portuguesa Isabel Lucas, autora de 'Viagem ao País do Futuro'
A jornalista portuguesa Isabel Lucas, autora de 'Viagem ao País do Futuro' - Paulo Alexandrino/Divulgação

Em 2011, o dicionário Houaiss listava 400 mil palavras na língua portuguesa, mas, segundo Ieda Maria Alves, linguista brasileira conhecida por suas pesquisas sobre neologia, lexicologia, lexicografia e terminologia, o número de vocábulos que realmente existem é ainda maior e, levadas em consideração as palavras técnicas e científicas, devem existir cerca de 600 mil palavras na língua de Camões.

Com o advento da literatura indígena e o aportuguesamento de muitas palavras, o número engrossa ainda mais. Se no fim juntarmos aquelas que a tecnologia cunha diariamente, a língua não tem fim. Essa língua sem fronteiras e sem tempo foi uma das âncoras da conversa que a coluna teve com a escritora e jornalista Isabel Lucas, recente curadora da presença de Portugal na Bienal do Livro de São Paulo.

A primeira mulher das conversas Gente de cá de lá na mesa do Cícero encontrou nessa diversidade linguística algumas das rotas que a ajudaram a escrever "Viagem ao País do Futuro", que, como o próprio nome define, é o Brasil.

Viajaste intensa e meticulosamente pelo Brasil. Como começou tua relação e interesse por essa nação continental que fala português? Enquanto portugueses, o Brasil penetra as nossas casas desde que somos crianças. No entanto, fisicamente, conheci o Brasil apenas em 2016. Vinha de Nova York, fui convidada para um evento literário em São Paulo e, por sorte, tive esse primeiro encontro com a língua. Por meio dela comecei a desvendar aquele país tão imenso.

Como é que ocorreu esse processo? Por meio das palavras e dos silêncios vamos encontrando as correspondências e as diferenças entre a nossa realidade e a do Brasil. O primeiro equívoco aconteceu logo na entrada do avião. A pessoa que me fazia o check-in estranhou o tamanho da minha bagagem —eu trazia apenas uma mochila, enquanto a maioria dos passageiros brasileiros carregava malas grandes. Então o assistente de bordo me diz: "Moça, você voa leve!".

A língua, mesmo se feita com as mesmas palavras, muitas vezes é outra… Aquele comentário foi um quebra-gelo. De seguida, ao entrar no voo, pedi a uma aeromoça um copo de água, ao que ela me responde: "Oi?". Repito o pedido da mesma forma, e a hospedeira prontamente me pergunta: "Você é argentina, né?" [risos]. Aí eu pensei: "Não estou em casa, aqui não se fala a minha língua". No entanto, quando aterrei em São Paulo senti uma familiaridade que não se percebe muito bem de onde vem. São Paulo é muito diferente de tudo o que é português —é uma megalópole.

Familiaridade num lugar com muitas milhões de pessoas… A familiaridade é mais marcada em São Paulo. Mas, curiosamente, os lugares do Brasil onde menos estranharam o meu português foi no interior do Nordeste. Talvez porque há muito vocabulário e uma sintaxe que é comum com o português que falamos em Portugal. Ou, possivelmente, por ser um lugar muito fechado onde mantiveram uma forma de falar mais próxima do português europeu. Reconheci lá muitas expressões que são usadas pelos meus avós.

Recordas alguma expressão? É mais uma forma de estar. Nunca houve alguém que tenha me dito "não percebi o que disse". Em certa ocasião, de viagem com uma amiga de São Paulo, entendiam-me melhor a mim do que a ela. Senti, estranhamente, uma pertença ao Nordeste que minha amiga não partilhava.

Em 2019, durante a viagem que deu origem ao teu livro "Viagem ao País do Futuro", o Brasil passava por um tempo simbólico. Nunca a democracia brasileira tinha tido um governo tão influenciado pela extrema direita. Como alguém que viajou entre o Sudeste e o Nordeste brasileiro sentiu essa dicotomia? Na noite da eleição eu estava em São Paulo e vi a cidade dividida. Aí tornou-se evidente a ideia de que o lado urbano pertence a uma parte do espectro político, e a parte rural, ao lado contrário.

Um pouco como o que viste nos Estados Unidos… Exatamente. Onde os locais mais cosmopolitas tendiam para os democratas, e os rurais apoiavam, majoritariamente, os republicanos.

No Brasil acabamos por ter as duas "facções" a conviver no mesmo local… Principalmente em São Paulo. À medida que ouvia as pessoas e as suas razões de terem votado de um lado ou do outro, os pré-conceitos iam-se desmontando: as coisas são mais difíceis de explicar do que parecem. Há uma tendência tanto no Brasil como nos Estados Unidos, ou em outros países onde ocorreu este fenômeno, de as pessoas tentarem simplificar o que de fato aconteceu. O fato de as pessoas viverem cada vez mais fechadas dentro das suas próprias bolhas sociais —econômicas, culturais, territoriais, "internáuticas"— impede-as de conversarem. O que mais preocupa é que hoje em dia as pessoas conversam com a semelhança e desaprenderam de conversar com a diferença.

Isso acontece de um lado e do outro. Sim. Uns não querem saber, outros nem têm como saber. Territorialmente, é notório que o Nordeste está eternamente grato ao que Lula fez durante os seus governos. Mas atenção: esta "obra" de Lula no Nordeste é o que nós em Portugal chamaríamos de "condições mínimas de subsistência" —água potável, educação, meios de transporte. Em outros territórios mais ricos, onde a igreja evangélica tem um peso maior, a palavra mais importante para entendermos o que move as pessoas de lá a votar é a "segurança".

Até porque é essa mesma segurança que motivou tantos brasileiros a virem morar em Portugal. Exatamente. Quando perguntamos aos brasileiros que moram em Portugal por que vieram, a maioria, apesar de estar frustrada com a situação política, evidencia a segurança como a principal razão. Poder andar a pé na rua à noite ou com o telemóvel na mão são "luxos" que nós portugueses temos por garantidos, mas que no Brasil são vistos como verdadeiras regalias.

O Brasil tem um novo presidente. Apesar da tragédia do 8 de Janeiro, sentes que já existe um processo de mudança em curso? Nota-se já uma diferença. Mas falamos de um país dividido, que precisa fazer as pazes consigo mesmo.

Lamber as suas feridas… Sim, tentar sarar. Até porque as feridas ainda são muito visíveis. Ao viajar pelo Brasil em 2019 era perceptível a divisão. Na altura, era muito difícil ter uma conversa que não fosse parar em política. E, depois, se a conversa política fosse entre pessoas que não fossem do mesmo lado...

Era impossível continuá-la. Tal qual. E vocês, melhor do que eu, sabem como famílias se dividiram e amigos deixaram de se falar.

E muitos procuram agora Portugal. Como é que os portugueses podem receber os tantos brasileiros que lá vivem, tendo principalmente em conta a união cultural entre os países que forma uma nova cidadania da língua? Não sei como responder [risos gerais]. É o que sinto… Um cidadão brasileiro traz uma experiência, um português que vive em Portugal tem outra, e ambos são falantes da língua portuguesa. Essa possibilidade de convívio entre vivências deve ser valorizada, porque ganhamos todos com isso.

As palavras contam uma história: história de civilização e de experiência humana. Se olharmos para a história de uma palavra no Sul, no Nordeste e no Sudeste do Brasil, ela é diferente para cada região.

E em relação aos livros que circulam entre os dois países? Infelizmente, os livros entre Portugal e Brasil dificilmente circulam. Até há pouco tempo faziam-se traduções de língua e adaptações de forma que fosse mais fácil o livro chegar ao outro lado do Atlântico. Isto mata a diferença que nos enriquece.

Trabalho com a língua, com livros, crítica literária, entrevisto escritores brasileiros. No entanto, por melhor que a crítica a um livro de autor brasileiro seja, dificilmente aquele livro irá vender bem em Portugal.

Qual a explicação para isso? Tem que ver com a dificuldade de nós portugueses vermos o português escrito de uma forma que não falamos. Aceitamos a tradução de outras línguas para o nosso português, mas há ali uma barreira difícil de ultrapassar. Uma palavra que não conhecemos… Falta de contexto sobre certas formas de falar… E o livro vai para trás… E são sempre os mesmos a ler as mesmas coisas.

Muito recentemente, o Pavilhão de Portugal foi muito elogiado na Bienal do Livro de São Paulo, com curadoria tua. Deveria o Brasil, com todos os seus recursos para a cultura, tentar fazer a mesma aproximação dos escritores brasileiros ao público português? O futuro da língua portuguesa e a sua grande potência é o Brasil. Se há um país dominante, em termos de língua, é o que está na América do Sul. Sinceramente, o Brasil pode passar muito bem sem Portugal. O Brasil soube muito se descolonizar usando a língua. Ele se apropriou dela. Aliás, primeiro foi-lhe imposta, mas depois chegou um momento em que a transformou. Os brasileiros tornaram a língua livre e desobediente (no bom sentido), livrando-a de uma série de complicações. O português que se fala hoje no Brasil tem muitas expressões ótimas.

Uma das coisas que me fez impressão, enquanto lá estive, foi uma conversa que aconteceu no Rio. Perguntaram-me onde se falava o português mais puro. Considero a expressão de língua pura muito perigosa. Todas as ideias que evocam o puro costumam não ser boas. Respondi: "Não sei do que está a falar". A pessoa não ficou contente com a minha resposta, ao que respondeu: "Dizem que é em Coimbra".

São as pessoas de Coimbra que dizem isso [risos gerais]. Não há português puro. Daí ser tão estranho um professor português dizer ao aluno brasileiro que não está a falar bem.

Sobretudo se o professor só tem emprego por causa do menino que fala brasileiro. Além disso, é errado que alguém fique preocupado por uma criança usar expressões brasileiras, como se não fosse português correto. Lá estamos nós a entrar numa coisa que nos separa em vez de unir.

Por que não aprendemos novas palavras —em português— uns com os outros?

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