José Manuel Diogo

Diretor da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Brasileira, é fundador da Associação Portugal Brasil 200 anos.

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'Mar Branco', dublada na Netflix do Brasil, perde doçura da voz açoriana

Série portuguesa também conhecida como 'Rabo de Peixe' sacrifica idioma original com medo de perder público do Brasil

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Esta é a história que nos explica por que nunca compensa trocar um original por sua cópia. Máxima que se aplica, sem exceção, a todas as obras de arte e a todos os sotaques da nossa língua portuguesa. Bem-vindos à parábola de "Rabo de Peixe" ("Mar Branco", no Brasil), contada no grande altar da Netflix.

Rabo de Peixe é o nome de uma aldeia. Esse lugar ermo fica na ilha de São Miguel, bem no meio do Atlântico, no Arquipélago dos Açores. A aldeia é tão remota que seus habitantes têm dois problemas que poucas vezes conseguiram resolver: a pobreza e a falta de novidades.

Os atores João Pedro Vaz, Salvador Martinha e Maria João Bastos em ação na série "Rabo de Peixe"
Os atores João Pedro Vaz, Salvador Martinha e Maria João Bastos em ação na série 'Rabo de Peixe' - Paulo Goulart/Divulgação Netflix

Até que um dia o inesperado aconteceu. Devido a um acidente marítimo com um grupo de italianos da Máfia siciliana, traficantes de cocaína, uma carga de centenas de toneladas dessa sofisticada substância de ócio e vício chegou à costa sem dono, sendo recolhida (e degustada) por simples pescadores.

O acontecimento, verdadeiro, mudou para sempre o cotidiano (e a história) da população da remota ilha e, hoje, 22 anos depois, coloca-a nas bocas do mundo por meio de um seriado com ambição de se tornar um sucesso em nível global.

Seus produtores, sabendo quão extraordinária e poderosa era a narrativa, pensando nos aplausos do mundo e nos telespectadores do Brasil, tomaram então a decisão: para não perder nenhum espectador, atrizes e atores não falariam com o complexo (e delicioso) sotaque dos Açores, mas, em vez disso, um "correto" português de Portugal.

Alguém, achando que dessa forma o roteiro seria um melhor "argumento", convenceu o diretor a "realizar" na língua neutra, provavelmente convencido de que a norma internacional do português é o europeu. Erro que até se pode perdoar por alguém que chama os créditos de "genérico".

Mas foi pensando na tropical bilheteria, que é sempre muito maior que a lusa "bilheteira", observando que o português era "tão de Portugal", "tão chato e de boca fechada" e "tão impossível de entender", que os responsáveis pela Netflix brasileira decidiram dobrar o rabo ao peixe, dublando tudo.

Como resultado, perdeu-se o doce cantar das vozes açorianas, uma verdadeira obra de arte linguística, com suas expressões peculiares e ritmo contagiante. O seu sacrifício, silenciado pelo medo de não ser compreendida pelo público brasileiro, foi em vão.

Para quebrar o galho, os produtores lusos colocaram no roteiro expressões como "resolver o problema" no lugar de "dar um jeitinho", que significa encontrar uma solução improvisada ou criativa para um problema, tanto no português do Brasil como no falar açoreano.

Não consigo resistir ao aforismo do poeta luso Almada Negreiros. Bom gosto: seda a imitar chita. Mau gosto: chita a imitar seda. Ficou a língua a perder. E foi pena, porque provavelmente apenas isso impede "Rabo de Peixe" de ser a melhor produção televisiva que Portugal já fez.

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