Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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Josimar Melo

Viajar sem sair do lugar

Lembranças evocam Fernanda Young e Paulo Leminski

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Há poucas semanas propus à roteirista Fernanda Young —que, numa notícia dolorosa, morreu inesperadamente no domingo (25)— uma viagem do tipo que só os bons escritores conseguem fazer: visitar o mundo sem sair do lugar.

Eu estava precisando de um roteirista para um projeto que estou desenvolvendo e pelo que conhecia de Fernanda (pessoalmente e pela obra) achei que seria a cara dela. 

Maíra Mendes/Folhapress

Mas ela me disse ter contrato de exclusividade com uma emissora de televisão, e não poderia se juntar a mim num trabalho desenvolvido para um outro canal.

O projeto em questão abarca, entre muitas outras coisas, experiências de viagem, mas viagens que já aconteceram.

Não se trata, portanto, de escrever um roteiro documental explorando lugares do mundo, como alguns trabalhos que tenho feito —caso das séries “O Guia” e “Comida é Arte” (ainda inédita). Nesse caso será preciso abordar lugares onde já aconteceram coisas, combinando realidade e ficção.

E sempre me fascinou esse tipo de viagem sem sair do lugar, ou a capacidade de escritores imaginarem o mundo exterior de uma forma convincente o bastante para que a gente viaje junto, sem a menor dúvida da veracidade dos relatos.

Acho um espanto, por exemplo, que o mineiro Guimarães Rosa (1908-1967) tenha sempre vivido em cidades e tenha feito somente uma viagem de dez dias pelo interior do estado para, desse breve contato com o mundo rural, recriar genialmente a vida dos vaqueiros com o estofo que a gente sente ao ler seu “Grande Sertão: Veredas”. A obra seguramente é mais produto da criação do que da transposição da experiência vivida.

Um pouco o contrário do jornalismo, onde o repórter deveria ser uma teia o mais translúcida possível (ainda que impossível, no limite) entre fatos que relata e leitor/expectador.

No caso do relato de viagens, a precisão da informação e do serviço são fundamentais para quem consome o jornalismo de turismo. Dar lugar à invenção seria, como regra, perigoso. 

Pode haver espaço para uma interpretação literária da experiência, mas é muito mais difícil de realizar. No mínimo, é mais difícil de ter qualidade e de ser legitimada pelo leitor.

No caso de um roteiro com pitadas de realidade e de ficção, é preciso navegar nesses limiares entre a vida real, os lugares reais, e a invenção. Requer-se redobrado cuidado.

É uma tristeza que Fernanda Young não tenha, desde o início, podido me acompanhar nessa viagem. E uma tragédia que em seguida ela tenha embarcado nessa outra, tão prematura e sem volta.

Fico feliz que a última impressão que me deixou sua boca desbocada tenha sido muito bonita: como não podia assumir a empreitada, ela imediatamente me sugeriu outra pessoa, a roteirista Juliana Rosenthal.

Mas, principalmente, o fez com tanto entusiasmo e tantos elogios a uma suposta concorrente de profissão que me encantou seu desapego.

Que delícia saber que entre artistas, normalmente (talvez uma tendência inevitável) com o ego inflado, pode existir a generosidade de reconhecer e propagar o talento dos seus colegas. Mais uma lição que nos deixou Fernanda Young.

Falando em vidas que se cortaram em meio ao pleno vigor criativo, impossível não viajar a Curitiba e lembrar, ao menos pela proximidade de datas, de Paulo Leminski (1944-1989), escritor, poeta, crítico de abundante produção e que morreu aos 44 anos. Nesse mesmo fim de semana da partida de Fernanda, ele completaria 75 anos.

Iconoclasta e sumidade literária como ela, Leminski tinha minha especial admiração desde há muito —talvez recíproca, embora não nos conhecêssemos pessoalmente. 

Ele simpatizava com o grupo político trotskista em que eu militava ardentemente nos anos 1970 e 1980, que no movimento estudantil era conhecido como Liberdade e Luta.

Leminski tem um longo poema em que fala da longa viagem à velhice (que ele nunca chegaria a alcançar) e ao depois, com trechos antológicos.

No meio desse fluxo criativo, falando da última viagem sem volta, ele mencionou nosso movimento, ao qual dedicou: “Para a liberdade e luta / me enterrem com os trotskistas/ na cova comum dos idealistas / onde jazem aqueles / que o poder não corrompeu / me enterrem com meu coração / na beira do rio / onde o joelho ferido / tocou a pedra da paixão”.

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