Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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Josimar Melo

Ladeira abaixo e, pior, acima também

O dia em que o turista que só anda no plano enfrentou colinas da própria cidade

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Sou do tipo que viaja de avião, mas adora uma caminhada. Aonde chego, mal despejei a mala e já estou na rua. Não tenho a perícia de demarcar terrenos com a chancela indelével de um cão, e nem quero.

Apenas gosto de fingir que não sou forasteiro, espreitar a redondeza e, no dia seguinte, dizer que vou até ali tomar um café no "meu" bar da esquina, ou folhear livros na "minha" livraria do bairro, ou até mesmo (juro que já fiz, em priscas eras) cortar o cabelo no barbeiro do quarteirão.

O Beco do Batman, na Vila Madalena, zona oeste de São Paulo - Rivaldo Gomes/Folhapress

Sempre faço isto, com apenas uma ressalva: aquele canto que finjo ser meu velho entorno de infância precisa estar num terreno plano. Pois, atualmente, para mim, ladeiras são paisagem, nasceram para ser admiradas, jamais escaladas (a pé).

Faço em São Paulo o mesmo que em toda cidade plana do mundo. No meu dia a dia caminho bastante. Não por esporte, por locomoção. Tenho limitadíssima paciência para caminhar para lugar nenhum.

Ir ao parque andar ou correr em círculos me deprime como deve ficar deprimido um peru bêbado, que gira em vão antes do abate (a estar embriagado, prefiro o lado de cá da mesa).

Ir a uma esteira caminhar indefinidamente sem sair do lugar me desespera como deve desesperar o hamster que, naquele cilindro sádico, corre como se lutasse pela vida, sem nunca chegar a lugar nenhum.

Explicaram-me que tanto "deslocamento imóvel" leva a um maravilhoso pote de ouro —a tal endorfina, que durante a correria produziria ondas intensas de prazer. Já tentei acreditar nisso, corri como louco, mas meu metabolismo sempre recusa a esparrela.

Corro, corro, e nada de prazeres, pelo contrário: a cada passo, sinto jorrar pelos meus poros esguichos de suor encharcando borbotões de neurônios que, revoltados e em desespero, fogem aos milhões do corpo (Peru? Hamster?) que age tão sem propósito.

Pois bem. Tudo isso para explicar que, na cidade dos outros ou na minha, prefiro deslocar-me no plano e no ritmo que a evolução imprimiu em nossos corpos: o do mínimo esforço. No dia da caça, corra como um faminto atrás do bisonte; nos demais, poupe as energias acumuladas.

Meu dia da caça é a feira dos sábados. Que fica na mesma cota geográfica (a mesma altura) de onde moro. Mas, abri uma agradável exceção no sábado retrasado, dia 8, na perigosamente inclinada Vila Madalena.

É um bairro de São Paulo cheio de prós e contras –entre estes, suas íngremes ladeiras. Um carro as vence sem esforço, mas nele esvai-se meu prazer das caminhadas, que inclui a mansa observação do entorno.

Fui a uma exposição coletiva na Galeria Millan, um apelo irresistível. O galerista é um conhecido de infância, uma das artistas é a querida avó da minha filha, Helena Carvalhosa, o curador, um companheiro de juventude, o guru Rodrigo Naves, e entre as obras, artistas por quem nutro grande admiração, como Paulo Pasta e Laura Vinci.

Pois saindo de lá, despenquei pelas ladeiras (subir de volta foi outra coisa). Em busca de energia, rumei para o Martim Fierro, saudoso do seu churrasco (fracasso: havia 50 minutos de espera).

Mudando de continente, aportei então no vietnamita Miss Saigon, mais por sua maravilhosa história (um casal de refugiados resgatado em alto-mar por um navio da Petrobras) que pelo tempero, brando (mas diverti-me invadindo a mesa de um casal de amigas que ali avistei).

E ainda parei na portinha do irresistível pão de queijo Dona Zelda, para comer com o cafezim mineiro de lá.

Vencidas com bravura as assustadoras colinas, ainda fui recuperando as calorias que se escoavam pelo caminho; e, sendo um passeio com destinos, não houve fuga aparente de neurônios. O passeio até ficou no lucro.

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