Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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Josimar Melo
Descrição de chapéu América Latina

Jantar no México é celebrar a vida

A reverência aos mortos na obra de Rulfo, de Iñárritu e de um grande chef

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Semana passada fui jantar no México. Sim, é parte do serviço: pegar um avião, ir comer ali a 8.000 quilômetros e voltar.

É um alívio quando, além de ser trabalho, o jantar vale a pena —como foi essa refeição em Guadalajara, feita a quatro mãos pelo chef local Francisco (Paco) Ruano, do restaurante Alcalde, que comemora dez anos, junto com o premiado chef peruano Virgílio Martínez, do restaurante Central.

Os chefs Virgílio Martínez (esq.), do restaurante peruano Central, e Paco Ruano, do restaurante mexicano Alcalde, no Alcalde, em Guadalajara
Os chefs Virgílio Martínez (esq.), do restaurante peruano Central, e Paco Ruano, do restaurante mexicano Alcalde, no Alcalde, em Guadalajara - Inés Miroslava/Divulgação

É natural que o jornalista prepare este tipo de viagem pesquisando os personagens e o local do evento. Mas quis mirar meu novo destino por ângulos diferentes.

México? Isso apressou minha disposição para assistir ao novo filme "Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades" (2022), do mexicano Alejandro González Iñárritu.

E casualmente meu editor lembrou que o estado de Jalisco, para onde eu iria, era cenário do romance "Pedro Páramo" (que eu lera na adolescência) e terra natal do autor Juan Rulfo (1917-1986). Então, na véspera de embarcar, comprei-o (foi mais cara a entrega urgente que o próprio livro...).

Não é a primeira vez que invento tais sinestesias em viagens de trabalho. Falando de Rulfo, precursor do realismo fantástico latino-americano, lembro que um de seus discípulos foi personagem em duas crônicas neste espaço, o colombiano Gabriel García Márquez (1927-1914).

Numa delas relatei que li sua ficção "Do Amor e Outros Demônios" —uma trágica história de amor e fanatismo religioso passada há séculos no antigo convento de Santa Clara— enquanto me hospedava no mesmo local (hoje restaurado como lindo hotel) em Cartagena (Colômbia).

Agora foi a vez de Rulfo e de Iñárritu. O primeiro escreveu apenas dois livros, sendo que "Pedro Páramo", de 1955, marcou a literatura do século 20. Ali se sobrepõem, como se tornou marca no realismo mágico (ou fantástico) do continente, e meio em paralelo à vanguarda surrealista europeia, planos de existência e de irrealidade que se entrelaçam. Mortos e vivos convivem numa naturalidade trágica, espelho da aridez da pobreza e do contraste social entre o latifúndio e o povo miserável no campo mexicano no século 20.

Uma superposição de tempos e de estados de espírito (dos vivos e mortos) que vejo se refletir no filme, onde o bem-sucedido personagem mexicano é tragado pelos novos donos de sua terra (os Estados Unidos, que anexaram grande parte do México) enquanto convive com a crueldade que mitiga seus conterrâneos na fronteira entre os dois países. E, à moda do realismo mágico, voa, fala com mortos e ouve num estúdio de TV notícias sobre o que ainda não sucedeu com seu destino.

Tudo isso me vem à cabeça em meu jantar no Alcalde, em Guadalajara. Ele começa obviamente com tequila, a bebida típica do estado de Jalisco —e cuja produção testemunhei durante a tarde na região produtora, uns 70 quilômetros a noroeste de Guadalajara.

Cozinha do restaurante mexicano Alcalde, em Guadalajara
Cozinha do restaurante mexicano Alcalde, em Guadalajara - Inés Miroslava/Divulgação

Ali, à sombra do adormecido vulcão de Tequila, o agave azul, com seu formato de pinha e bulbos de 40 quilos (colhidos aos cinco anos de vida), é cozido no vapor, espremido e tem seu suco fermentado (com leveduras naturais), destilado e parte dele repousado em tonéis de madeira. Sendo de boa qualidade, dispensa maquiagens de sabor como sal e limão na hora de se beber puro.

No jantar, entre tantas iguarias de tão talentosos chefs, nestas poucas linhas eu homenageio, de Paco Ruano, o timo de cordeiro com missô de feijão e um molho de xamues —inseto que lembra o percevejo. (Você leu direito.)

Prato mostra timo de cordeiro com missô de feijão e molho de xamues (inseto que lembra o percevejo)
Timo de cordeiro com missô de feijão e molho de xamues (inseto que lembra o percevejo) - Inés Miroslava/Divulgação

A convivência de vivos e mortos, de aridez e pujança, na literatura ou no cinema mexicano, não é de estranhar num país onde culturas indígenas massacradas assombram os invasores, onde o Dia dos Mortos é dia de festa e comer insetos é celebração do paladar e da vida.

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