Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Juliana de Albuquerque

A internet e o eterno apelo do fascismo

Umberto Eco frisa a importância de compreender fascismo para além de suas tradicionais demarcações históricas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ao recebermos o nosso primeiro email em 1995, meus pais comentaram entusiasmados sobre as novas possibilidades que surgiriam com a internet.

Teríamos acesso a jornais e revistas estrangeiras sem precisar de atravessar a cidade para visitar a livraria do aeroporto, muitas vezes correndo o risco de não encontrarmos as publicações que desejávamos. Aprenderíamos novos idiomas e, embora não tivéssemos como viajar, eu poderia corresponder-me em inglês com quem quer que fosse de Land’s End a John O’Groats, o equivalente britânico da brasileiríssima expressão “do Oiapoque ao Chuí.”

Estávamos otimistas de que o mundo deixaria de ser distante para finalmente tornar-se o quintal da nossa casa. Enquanto meu pai colecionava em disquetes alguns dos seus livros prediletos em formato HTML, eu me aventurava pelas páginas do Geocities em busca de quem conversar sobre filatelia, velhos seriados ingleses de espionagem e histórias de detetive.

Daquela época, guardo com carinho uma carta que recebi da extinta Agatha Christie Society, que me explicava o funcionamento da instituição que, descobri hoje, fora presidida pela filha da própria autora. 

E, embora não fizesse sentido tornar-me sócia de uma comunidade de aficionados em outro continente quando sequer tinha permissão para andar sozinha pelo bairro, aquela correspondência incentivou-me na criação dos meus próprios grupos de leitura e sociedades secretas, para as quais eu sempre dava um jeito de recrutar os meus primos, em tentativas quase sempre malfadadas de compartilhar meus interesses.

Ao crescer neste ambiente esperançoso do progresso tecnológico, durante muito tempo tive a impressão de que nenhum mal poderia advir de uma ferramenta criada para democratizar a informação e permitir o compartilhamento de ideias. A internet resgatou-me de uma adolescência solitária, apresentando-me gente interessante, permitindo que o meu círculo social se expandisse para além dos muros da escola.

Em 2000, aos meus 16 anos, um monólogo que escrevi sobre a loucura foi publicado em um zine de estudantes da Universidade de Brasília. Em 2007, também graças a um anúncio na internet, publiquei meu primeiro artigo acadêmico em língua estrangeira, dando-me a oportunidade de estabelecer vínculos de pesquisa fora do Brasil.

Recentemente, no entanto, tenho motivos para acreditar que habitei uma realidade paralela, pois, em junho de 1995 —no mesmo ano em que a minha família comemorava o primeiro email— o filósofo Umberto Eco escreveu para a New York Review of Books sobre as suas experiências de infância na Itália de Mussolini, do apelo universal da retórica fascista. De como os novos meios de comunicação alimentariam devaneios populistas e o violento retorno de um imaginário totalitário, há muito reprimido.

 

Para Eco, o futuro nos reservaria “um populismo da TV ou da internet, no qual a resposta emocional de um grupo específico de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a Voz do Povo.” Algo que se tornaria evidente a partir dos eventos políticos de 2016, tal o brexit e a chegada de Donald Trump à Casa Branca. Ou a partir dos resultados das eleições brasileiras de 2018, que expressaram o descontentamento de grupos que se sentem privados de uma identidade social definida.

Estas e outras previsões fazem parte de uma lista formulada pelo autor, em seu texto, para ajudar a identificar as expressões difusas de um fascismo eterno ou primordial, caracterizado pelo culto a tradição, a rejeição da modernidade, o irracionalismo, a intolerância, o apelo à frustração individual ou coletiva, o nacionalismo, a necessidade de eleger-se um inimigo, o culto a violência, a indispensabilidade de um herói e o clima de aparente repressão sexual.

Ao propor essa lista, Eco frisa a importância de compreendermos o fascismo para além das suas tradicionais demarcações históricas. Ele sugere que tanto na Itália de Mussolini como hoje, ao invés de um movimento político com contornos filosóficos bem definidos, o fascismo seria a manifestação de uma imaginação totalitária desordenada em buscar uma espécie de sincretismo entre posicionamentos incompatíveis, a configurar-se como um viveiro de contradições.

"Como podemos conceber um movimento verdadeiramente totalitário capaz de combinar monarquia e revolução, o Exército Real com a milícia pessoal de Mussolini, a concessão de privilégios à Igreja com a educação estatal exaltando a violência, o controle absoluto do Estado com o livre-mercado?”

O filósofo argumenta que tal sincretismo serviria “para explicar por que a palavra fascismo se tornou uma sinédoque, isto é, uma locução que pode ser utilizada para descrever diferentes impulsos totalitários.” No entanto, creio que este mesmo sincretismo também nos ofereça uma interpretação para o tipo de comunicação cada vez mais em voga na internet, quase sempre a utilizar-se de uma mixórdia de informações para se chegar a lugar algum.

Se Eco estiver certo ao escrever que “hábitos linguísticos são frequentemente importantes sintomas de sentimentos subjacentes,” imagine o que ele não diria após um dia inteiro no Twitter, a testemunhar as trocas de agressões entre políticos, as reações igualmente violentas dos seus eleitores e a catarse de internautas diante de crises, tragédias e catástrofes naturais.

Inspirado nas observações de Umberto Eco que servem de epígrafe para o seu mais recente livro, "The Twittering Machine"o escritor britânico Richard Seymour descreve o fenômeno das mídias sociais como um vasto experimento de escrita coletiva que, no entanto, nos mantém presos a um excesso de informações, comprometendo o exercício nossa capacidade interpretativa.

Da mesma forma que Eco, Seymour chama a atenção para os sentimentos que animam boa parte da nossa dependência no atual modelo de interação online: o risco que a internet representa à democracia deve ser encarado como mais um reflexo da nossa habitual relutância em questionar as experiências e as amarras afetivas que nos levam a abrir mão da nossa autonomia.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.