Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Personagens de Bashevis Singer e Bellow são arquivistas da loucura

Os dois escritores, vencedores do Nobel de Literatura, se valeram da tradição judaica para tratar de temas universais

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Tanto em sua aparência física como em seu comportamento, o escritor Isaac Bashevis Singer remete-nos a um dos mais famosos personagens de Saul Bellow: o velho jornalista e intelectual Arthur Sammler que, para escapar da perseguição nazista, radicou-se nos Estados Unidos, onde passou a observar os efeitos do trauma da guerra, do exílio e da assimilação cultural entre os seus amigos e parentes mais próximos.

Esta semelhança entre o escritor e a personagem de ficção poderia ser mera coincidência não fosse a lembrança de que, no início da década de 1950, Bellow foi um dos principais responsáveis em apresentar Singer à cena literária norte-americana através da sua tradução do conto Gimpel, O Bobo” para a revista Partisan Review.

Para o biógrafo Zachary Leader, autor de "The Life of Saul Bellow" (2016), o romancista teria ficado impressionado com a capacidade de Singer em se utilizar do folclore e das tradições judaicas, como da língua ídiche da Europa Oriental, para tratar de temas universais  —tal como o amor, a  violência e a loucura— sem deixar-se levar pelo fácil apelo do exotismo.

O escritor Saul Bellow, Nobel de Literatura
O escritor Saul Bellow, Nobel de Literatura - Reprodução

O impacto do escritor iídiche na obra de Bellow é flagrante em uma carta do autor para a biógrafa de Singer, Janet Hadda, em 1995, em que ele confirma que a tradução de “Gimpel” teria lhe proporcionado a chance de pensar sobre tudo aquilo que talvez estivesse a faltar em seu próprio trabalho, ao exemplo de uma imersão em temas relativos à vida judaica no Leste Europeu.

Filho de judeus lituanos emigrados da Rússia, Bellow nascera no Canadá e, logo cedo, mudou-se com a família para os Estados Unidos, tendo, portanto, uma experiência tangente da identidade cultural da sua comunidade de origem. Isto posto, pesquisadoras como a brasileira Thais Kuperman Lancman e a israelense Hanna Wirth-Nesher ressaltam o papel de Singer como um ponto de partida para muitos escritores judeus norte-americanos resgatarem a ideia de uma continuidade das tradições.

Wirth-Nesher, citada por Lancman em sua dissertação de mestrado — "A Lente Judaica de Saul Bellow em Herzog" (2016)—, chega mesmo a dizer que durante a tradução de Singer Bellow teria se colocado como um mediador de duas culturas, evitando traduzir termos relacionados à vida judaica, como o nome de alimentos típicos, objetos e entes folclóricos:

“Singer foi trazido à tona em prol de uma certa continuidade de uma identidade coletiva que não aquela da América cristã [...] No caso da tradução de Bellow para ‘Gimpel’, não apenas ele transformou a liturgia hebraica como inserida na civilização iídiche para o universo cristão, mas também a sua tradução final omitiu frases que parodiassem a religião judaica ou, ainda de forma mais significativa, ridicularizassem o cristianismo.”

Se esta tradução de “Gimpel” chamou a atenção das pesquisadoras, a mim, enquanto leitora de Bashevis Singer e entusiasta de Saul Bellow, o que mais desperta interesse é notar como em “O Planeta do Senhor Sammler” as reflexões do protagonista de Bellow reportam as preocupações de Singer em relação à condição humana. Muitas a evocar um questionamento sobre a existência de uma fronteira entre a fantasia e a realidade. Ora, no esforço para preservarmos a nossa memória, todos nós estamos suscetíveis a certa dose de excentricidade.

O escritor Isaac Bashevis Singer e a escritora Dvorah Telushkin, autora de "Master of Dreams"
O escritor Isaac Bashevis Singer e a escritora Dvorah Telushkin, autora de "Master of Dreams" - Reprodução

Sobreviventes de um universo destruído pela guerra, tanto Sammler como Singer trafegam incógnitos pela cidade de Nova York como se a eles tivesse sido vetada a possibilidade de participar do tempo corrente.

O primeiro a lembrar-se da época em que trabalhara como correspondente internacional em Londres para um jornal de Varsóvia. O segundo, dedicado à literatura e ao jornalismo em ídiche, a tentar romper a barreira linguística que o separava dos naturais da terra. Ambos a compartilhar da sensação descrita por Bellow de que, no grande teatro do mundo, os seus lugares de honra estariam do lado de fora.

Do mesmo modo que o narrador de Singer em contos como “A Cafeteria”, “Poderes”e “Uma Noite no Brasil” é levado a entrar na vida de estranhos para compartilhar das suas histórias de fantasmas e possessões, o personagem de Bellow, Arthur Sammler, encarna uma espécie de arquivista da loucura ao registrar os seus encontros com os mais diversos tipos humanos, cada qual a expor os sintomas das suas aflições:

“Tudo, claro, parece ser invenção do homem. Incluindo a loucura [...] Somos loucos se não formos santos e seremos santos apenas se conseguirmos superar a loucura. A força gravitacional da loucura estava empurrando os santos em direção à queda.”

Ao que uma das figurações de Singer em “Uma História de Duas Irmãs” responde: “Minha teoria é a de que a espécie humana sempre foi louca, desde o comecinho, e que a civilização e a cultura só servem para realçar a insanidade do homem.”

De forma a complementar esta análise, o crítico literário Adam Kirsch, autor de "The People and the Books: 18 Classics of Jewish Literature" (2016), propõe que a obra de Singer se utiliza de elementos da mística e do folclore judaico em um estudo sobre a natureza humana:

“Um conto de Singer sobre possessão demoníaca não ridiculariza as suas personagens por acreditarem em tal coisa. Em vez disso, Singer admite a existência deste fenômeno, mas nos permite entendê-lo como uma espécie de obsessão. Ele pinta o misticismo antigo nas cores escandalosas da psicologia moderna”.

Exemplo disto é o que acontece quando uma das personagens de “A Cafeteria” confessa ao escritor-personagem que teria visto Hitler e os seus comparsas atearem fogo em uma comedoria da Broadway:

“Me parecera uma bobagem total, mas agora eu começava a reavaliar a ideia. Se o tempo e o espaço não são mais do que formas de percepção, como diz Kant, e qualidade, quantidade, causalidade são apenas categorias do pensamento, por que Hitler não poderia conferenciar com os seus nazistas em uma cafeteria da Broadway? Esther não parecia louca. Tinha visto uma fatia da realidade que a censura celeste em regra proíbe [...] Lamentei não ter pedido mais detalhes.”

Em entrevista de 1985 para a televisão sueca, Singer comenta sobre duas das suas principais características, a ressaltar o importante papel que a compaixão e a rebeldia desempenham dentro e fora da atividade literária.

Segundo o autor, ter compaixão significa estar ciente de que toda criatura é refém daquilo que muitas vezes enxergamos como expressão do descaso divino ante a crueldade. Fenômeno este que ele testemunhou tanto no tratamento dos animais, que pouco podem fazer para se defender do homem; como do próprio indivíduo que, de repente, vê a sua vida virar de ponta cabeça por conta da violência e da arbitrariedade dos acontecimentos.

A rebeldia se revela à medida em que Singer relatar o pleito do indivíduo rejeitado e invisível, como Gimpel, a quem todos acham divertido passar a perna. Esta também é uma lição que podemos extrair das infinitas inquietações do protagonista de Bellow, cuja permanência no mundo dos vivos, mesmo precária, reflete a necessidade do indivíduo de insurgir-se contra o destino.

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