Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Natalia Ginzburg dá pistas sobre enigma das nossas lembranças

Como Proust, escritora italiana evoca no leitor fluxo desimpedido de recordações

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No começo da quarentena concluí a leitura de “Léxico Familiar” (1963), romance autobiográfico da escritora italiana Natalia Ginzburg. Apenas tomei conhecimento da autora no último ano ao conversar com uma amiga, que disse: “Leia! O livro é a sua cara. Tenho certeza que você vai gostar”. E, como recomendações desse tipo sempre me deixam curiosa, para saber de que modo os nossos amigos realmente nos enxergam, fiz o que me foi sugerido.

Não me arrependi. Com a quarentena, tenho, por vezes, convivido com o passado involuntariamente —e muito mais do que eu gostaria—, sentindo-me cada vez mais próxima dos hábitos que possuía na casa dos meus pais antes, mas muito antes de adentrar o frenético espetáculo de máscaras do universo adulto. Assim, quando sou acometida por essas memórias em gestos, palavras e sensações, reflito: “Como será que tudo isso fez com que eu me tornasse quem sou?”

Em “Léxico Familiar”, Ginzburg dá-nos diversas pistas sobre como lidar com o enigma da nossa formação. Nesse livro, ela figura como testemunha de um passado viscoso que se alonga a cada novo momento —como a trilha luminosa de um caracol de jardim— para se deixar expressar nas escolhas e práticas cotidianas da sua personagem.

A escritora italiana Natalia Ginzburg - Reprodução

Portanto, não é acidental a menção feita pela autora à obra de Marcel Proust, tão comentada ao longo do livro. Pois, como ficamos sabendo, a própria escritora tornou-se, na fase adulta, uma das tradutoras de Proust para a língua italiana.

Na introdução para a tradução brasileira de “Léxico Familiar”, o poeta chileno Alejandro Zambra se utiliza da mesma análise de Walter Benjamin sobre Proust para comentar os pontos de intersecção entre o projeto de Ginzburg e a ambição proustiana de construir um texto cuja unidade se estabeleça unicamente no ato da recordação.

Neste mesmo tom, Zambra descreve a personagem de Natalia como um corolário de Marcel, a quem somente passamos a conhecer de maneira difusa, a partir do seu exercício de recordação de fatos, objetos e pessoas:

“Daí que, durante a maior parte do relato, a narradora esteja ausente: ela é a que recorda, a que observa, e, claro, a que conta a história, mas sua dose de protagonismo é antes escassa ou tácita, sobretudo se se compara a este livro com a norma autobiográfica.”

Assim como na leitura de “Em Busca do Tempo Perdido” (1913-1927), é interessante como a narrativa de Ginzburg também passa por um processo de expansão para além das próprias páginas, evocando no leitor o seu mesmo gosto por acompanhar o fluxo desimpedido das lembranças; como quem perscruta a própria alma e aprende que a sua vida interior se dá a partir do infindável diálogo com uma multidão de personagens.

Creio que movimento semelhante também se repita em “A Imortalidade” (1990), no qual Milan Kundera se refere ao modo como os gestos se apoderam de nós, fazendo com que nos tornemos suas encarnações. Há quem diga, por exemplo, que eu revelo em minha linguagem corporal alguns trejeitos paternos, como o de pentear o cabelo para trás nos momentos de nervosismo. Só que, na perspectiva de “Léxico Familiar”, o nosso diálogo interior com os outros é perpetuado quase que inevitavelmente pela maneira como nos relacionamos com as frases e expressões das pessoas com as quais convivemos. Ora, diz-nos Ginzburg:

“Essas frases são como o nosso latim, o vocabulário de nossos tempos idos é como os hieróglifos dos egípcios ou dos assírio-babilônicos, o testemunho de um núcleo vital que deixou de existir, mas que sobrevive em seus textos, salvos da fúria das águas, da corrupção do tempo.”

Dentre as frases que compõem o meu latim ou, até mesmo, o meu ladino —caso estejamos aqui tentando apelar para a complexa dinâmica de como tentamos nos distinguir e, ao mesmo tempo, permanecemos condicionados pelo mistério das nossas origens—, nenhuma outra expressão figura de maneira tão central na minha vida como: “Ninguém em sã consciência seria capaz de fazer uma coisa dessas!”

Essa talvez seja uma das minhas frases prediletas na hora de manifestar inquietação ante uma decisão mal tomada. Herdei-a da minha mãe, de quem ouvi essas palavras sendo ditas inúmeras vezes, tanto em relação a si mesma, como em relação aos outros.

Gosto, inclusive, de quando a minha mãe usa essa expressão para julgar os próprios absurdos, quando, por exemplo, ela se exaspera ao contar algumas das histórias do seu casamento: “Ninguém em sã consciência teria feito o que eu fiz!”

De tanto escutar essa frase ao longo dos anos, acabei tomando-a para mim. Hoje, no entanto, percebo que, ao repetir as palavras da minha mãe naquele mesmíssimo tom de inquietação, busco estabelecer uma relação entre a razão e a nossa capacidade para administrar as nossas próprias emoções.

Nesse sentido, nenhuma outra expressão da nossa língua pátria seria capaz de ilustrar tudo aquilo que mais me perturba nesta vida e que, por isso mesmo, busco compreender através da atividade intelectual: por que será que as pessoas que julgamos estar em sã consciência agem de modo irracional, causando problemas tanto para si como para os outros?

Ainda ontem, enquanto escolhia uma epígrafe para a minha tese de doutorado, lembrei-me de todas as situações pelas quais eu passei até chegar aqui, a menos de vinte mil palavras da conclusão do manuscrito, e deparei-me com uma citação de Isaac Bashevis Singer em “The Cabalist of East Broadway” (o cabalista de East Broadway, publicado em 1971 na revista The New Yorker).

O escritor Isaac Bashevis Singer e a escritora Dvorah Telushkin - Reprodução

Singer é um dos autores que melhor descrevem o tempestuoso casamento entre razão e emoção. Nesse conto, o seu narrador relata uma série de encontros fortuitos com um personagem chamado Joel Yabloner, um escritor ídiche de aparência maltrapilha dedicado ao estudo da cabala. Em um desses encontros, porém, Yabloner surge em Israel mais moço, reabilitado socialmente, casado e usufruindo do reconhecimento pelo seu trabalho.

Os anos passam e, como que por mágica, o narrador volta a cruzar com a figura decrepita de Yabloner em Nova York. Ele questiona o motivo que fizera o cabalista deixar uma vida confortável para retomar uma existência miserável em East Broadway. É quando finalmente percebe: “O homem não vive de acordo com a razão”.

Pois bem, em um dos seus livros, a filósofa Susan Neiman comenta que o caminho que nos leva à filosofia é marcado por nossos próprios questionamentos de vida e morte (ou, no meu caso, de sanidade e autonomia). Se ela estiver correta, acho, portanto, que a reflexão provocada pela minha leitura de Natalia Ginzburg afirma novamente a importância de sempre nos esforçarmos para nos conhecermos um pouco melhor.

Principalmente ao enfrentarmos um momento político como o atual, em que, cada vez mais, nos deixamos levar pela confusão de afetos inexplorados e mal resolvidos, pondo a perder muitas das nossas principais conquistas desde a redemocratização. A nossa crise também é emocional. Ora, diria a minha mãe: ninguém em sã consciência faria com o nosso país o que muitos estão fazendo.

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