Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Livro aponta como tecnologia pode colocar em risco nossas liberdades civis

Autora analisa a 'cultura da exposição' e oferece sugestões para fazer uso mais seguro das redes

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Na última sexta-feira participei, ao lado de Jamil Chade, Ricardo Campos e Walfrido Warde, do lançamento brasileiro do livro “Privacidade é Poder” (2021), da filósofa Carissa Véliz, professora associada do Instituto de Ética e Inteligência Artificial da Universidade de Oxford.

Neste livro, Véliz comenta sobre o risco que o capitalismo de dados representa para a manutenção das nossas liberdades civis, ameaçando, deste modo, o funcionamento das sociedades democráticas; ao exemplo do que testemunhamos nos últimos anos com relação ao escândalo envolvendo a empresa Cambridge Analytica, cuja manipulação de informações de usuários do Facebook aparenta ter contribuído para com a polarização política durante a campanha do referendo brexit, em 2016.

Um dos principais temas da obra é a relação entre autonomia e privacidade. Segundo a autora, precisamos cultivar espaços privados em que nos sintamos seguros e acolhidos; seja para refletirmos e tomarmos decisões de modo independente, seja para exercitarmos a nossa criatividade. Sem esses espaços, nada garante que não estejamos sendo influenciados por estranhos:

“Viver em uma cultura na qual tudo o que você faz ou diz pode ser transmitido a milhões de outros, coloca uma pressão considerável sobre as pessoas. Sentir que nunca podemos cometer um erro em público quando nossos espaços privados foram reduzidos, coloca um grande peso sobre os nossos ombros. Quase tudo o que você faz é potencialmente público. Os seres humanos simplesmente não são o tipo de criaturas que podem prosperar em um aquário. Quando confiamos que os outros não vão passar adiante o que dizemos, é mais provável que sejamos sinceros, ousados e inovadores.”

A autonomia, no sentido abordado por Véliz, refere-se à nossa capacidade de autogoverno. Ou seja, de agirmos por conta própria e de sermos capazes de arcar com a responsabilidade por nossos atos.

Isto é assim porque pressupomos que um adulto em pleno domínio das suas faculdades mentais não esteja sob a tutela de outrem. Embora saibamos, igualmente, que a vivência da nossa autonomia implica lidar com o poder de influência de determinados indivíduos e grupos com quais mantemos algum tipo de relação de lealdade ou de pertencimento - ao exemplo do Estado, das nossas famílias, dos partidos políticos e das instituições religiosas.

Para conseguirmos conviver com essas influências com o mínimo de desenvoltura, sem corrermos o risco de agirmos de modo contrário aos nossos próprios interesses, precisamos valorizar certa noção de privacidade.

Nas redes, isto significa tomar cuidado com o compartilhamento dos nossos dados pessoais e, também, daqueles dados que possam afetar a vida de outras pessoas. A privacidade, pois, não é um conceito meramente individualista. Em verdade, como bem lembra a própria autora, este conceito está relacionado a uma experiência de comunidade na qual cada indivíduo deve ser respeitado enquanto um fim em si mesmo.

As fotos e os vídeos que compartilhamos dos nossos filhos pequenos podem até nos parecer inofensivos, mas o fato é que muitas crianças estão a crescer enquanto as suas intimidades estão sendo devassadas nas redes sociais. A curto prazo, talvez, isso represente alguma espécie de entretenimento para a família.

No entanto, futuramente, o acúmulo e a disponibilidade desse material nas redes podem acarretar uma série de consequências desagradáveis que abrangem desde a recusa de uma vaga para o seu filho em uma determinada escola até a impossibilidade de que ele venha a conseguir o emprego dos sonhos.

Algo semelhante vale para os testes de ancestralidade feitos na esperança de que os seus resultados sejam capazes de excluir qualquer dúvida sobre as nossas origens. Véliz critica esses testes não somente pela imprecisão da leitura do material genético, mas, sobretudo, pela ilusão de que a nossa informação genética possa ser devidamente anonimizada:

“As políticas de privacidade das empresas de testes de DNA, geralmente, referem-se à ‘desidentificação’ ou ‘pseudonimização’ de informações para tranquilizar as pessoas. Entretanto, dados genéticos não são fáceis de serem desidentificados de forma eficaz. É da natureza dos dados genéticos que eles possam identificar de forma única os indivíduos e suas conexões familiares.”

Segundo a autora, algumas empresas fornecedoras de testes de DNA compartilham ou até mesmo vendem dados para “data brokers” que, por sua vez, repassam essas informações para os seus clientes, ­"companhia de seguros", e, com isso, cria-se uma situação em que o indivíduo e os seus familiares correm o risco de não mais conseguir ter acesso a um plano de saúde.

Sabe aquele teste que você fez para comprovar que tem sangue italiano? Pois bem, ele também pode detectar informações como a probabilidade de você e os seus familiares desenvolverem determinados quadros clínicos. A privacidade, portanto, é defesa comum. Nesse sentido, Véliz chama a nossa atenção para o fato de que:

“A privacidade é importante para construir uma esfera privada robusta, uma bolha de proteção da sociedade na qual os indivíduos possam desfrutar de momentos e lugares livres dos olhares, julgamentos, perguntas e intrusões dos outros (...) Um grau saudável de reticência e segredo é necessário para que a vida civilizada funcione sem problemas. Se todos pudéssemos ler as mentes uns dos outros, a esfera privada se resumiria a nada, e a esfera pública se tornaria contaminada por infinitos conflitos desnecessários. O liberalismo não é apenas uma questão de governos não interferirem na vida privada dos seus cidadãos. Para que o liberalismo prospere, ele deve estar embutido em uma cultura similar de comedimento na qual os cidadãos comuns se esforcem para deixar uns aos outros viverem livremente.”

Isso não quer dizer que devamos nutrir qualquer nostalgia por um passado aparentemente mais simples. O retorno ao passado só é mesmo atraente ou para quem não esteve lá ou para quem jamais passou por uma situação de exclusão. Para driblarmos os problemas e desafios comuns ao progresso tecnológico, não necessariamente precisamos combater as ferramentas que, apesar de assustadoramente complexas, também nos beneficiam.

O que há de mais interessante no livro de Carissa Véliz é que, além de apontar problemas no que ela chama de cultura de exposição, a autora também oferece sugestões de como podemos fazer um uso mais seguro das redes e de como podemos reivindicar aos nossos representantes políticos que eles, também, se interessem em legislar sobre temas como a segurança nas redes e a atualização de medidas com relação à proteção de dados.

Em suma, da leitura do livro, podemos extrair três interessantes reflexões. A primeira delas é a de que a prudência é necessária para o exercício e a manutenção da nossa autonomia. A segunda é a de que, mesmo ao agirmos por conta própria, devemos levar em consideração o bem-estar do outro.

Finalmente, esse conhecimento, bem como o conhecimento das tecnologias que fazem parte do nosso cotidiano, são essenciais às nossas democracias.

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