Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Somos todos filisteus?

Filisteísmo cultivado encontra diversão nas folias de cancelamento das redes sociais

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Em “A Crise na Cultura - Sua Importância Social e Política” (1961), Hannah Arendt dá-nos pistas de como compreender esse fenômeno a partir de uma reflexão sobre a relação entre cultura, trabalho, entretenimento e consumo; sendo, além disto, uma ponderação que questiona a função do juízo de gosto enquanto conceito político.

Segundo Arendt, a modernidade alterou a maneira como nos relacionamos com a cultura. Se, antes, os seus objetos ofereciam-nos a oportunidade de exercitarmos a contemplação do mundo em que vivemos, hoje, esses mesmos objetos também servem de ferramenta para negociarmos uma posição de vantagem em nossas comunidades.

Esse raciocínio de Arendt encontra suporte na literatura alemã do final do século 18, a refletir um comportamento social tematizado por Goethe em “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister” (1795-96): obra em que o protagonista de origem burguesa busca cultivar-se à maneira dos nobres para alcançar a posição por ele almejada na sociedade. Wilhelm, portanto, protesta da sua ambição artística a enfatizar a necessidade do sujeito moderno viver de acordo com o que acredita ser. Assim, nos esclarece o personagem:

"Fosse eu um nobre, bem depressa estaria suprimida nossa desavença; mas como nada mais sou do que um burguês, devo seguir um caminho próprio, e, espero que me venhas a compreender [...]. Só a um nobre é possível uma certa cultura geral, e pessoal, se me permites dizer. Um burguês pode adquirir méritos e desenvolver o seu espírito a mais não poder, contudo a sua personalidade desvanece; apresente-se ele como quiser [...]. Tenho justamente uma inclinação irresistível por esse cultivo harmônico da minha natureza, negado a mim por meu nascimento. [...] Já percebes que só no teatro posso encontrar tudo isto e que só nesse espaço posso mover-me e cultivar-me à vontade. Nos palcos, o homem culto aparece tão bem pessoalmente em seu brilho quanto nas classes superiores; espírito e corpo devem a cada esforço marchar juntos, e, ali, posso ser e parecer tão bem quanto em qualquer outro lugar".

Esse olhar interessado de Wilhelm para uma expressão da cultura, como se dela pudéssemos extrair qualquer espécie de ganho em autoconfiança e em posição social, parece caracterizar o comportamento que Arendt apelidou de filisteísmo cultivado:

"Em outras palavras, os objetos culturais foram de início desprezados como inúteis pelo filisteu até que o filisteu cultivado lançasse mão deles como meio circulante mediante o qual comprava uma posição mais elevada na sociedade ou adquiria um grau mais alto de autoestima – quer dizer, mais alto do que aquele que, em sua própria opinião, julgava merecer por natureza ou nascimento".

O filisteu cultivado é todo sujeito que se utiliza das criações culturais com o objetivo de adquirir uma vantagem para si. Nesse sentido, mesmo com toda a sua boa vontade, o protagonista de Goethe dá-nos a impressão de se envolver com o teatro de Shakespeare; alheio, porém, ao fato de que uma obra como “Hamlet” ainda poderia revelar outros tesouros que não simplesmente uma fonte pessoal de instrução.

Na atualidade, quando Umberto Eco comenta que as redes sociais deram voz a uma horda de imbecis, talvez fosse mais apropriado dizer que essas ferramentas de comunicação foram bastante úteis em finalmente revelar o filisteísmo que informa boa parte da nossa relação com a cultura, ao exemplo da produção acadêmica meramente voltada para atender as expectativas institucionais de produtividade —a qual, por sua vez, serve apenas de combustível para a crítica cultural reacionária e para alimentar a sanha dos influenciadores digitais.

Para Arendt, quanto mais massificada uma sociedade, mais forte a impressão de equivalência entre cultura e consumo, a ponto de nos utilizarmos de objetos culturais para suprir a demanda da indústria do entretenimento.

No entanto, a filósofa chama atenção para o fato de que entretenimento e cultura não se confundem. Enquanto o divertimento atende a uma necessidade de preservação da vida humana em seu aspecto fisiológico —o sono, os exercícios físicos e a boa alimentação—, a cultura está fortemente relacionada com a origem de um mundo compartilhado, devendo os seus objetos serem dotados de permanência:

“A verdade é que todos nós precisamos de alguma forma de entretenimento, visto que somos sujeitos ao grande ciclo vital, e não passa de pura hipocrisia ou esnobismo negar que possamos nos divertir exatamente com as mesmas coisas que divertem e entretêm as massas de nossos semelhantes. No que respeita à sobrevivência da cultura, decerto ela está menos ameaçada por aqueles que preenchem o tempo livre com entretenimentos do que por aqueles que o ocupam com fortuitas artimanhas educacionais para melhorar a sua posição social".

Segundo Arendt, o nosso problema não está na reprodução e distribuição em massa de objetos culturais; não havendo nada de errado com o amplo acesso às obras que compõem o nosso cânone. O problema, no entanto, reside na modificação dessas obras com o objetivo de passarem elas a serem vistas como essenciais ao processo vital da sociedade: “Muitos autores do passado sobreviveram a séculos de olvido e desconsideração, mas é duvidoso que sejam capazes de sobreviver a uma versão para entretenimento do que eles têm a dizer.”

Faz algumas semanas o jornal The New York Times deu manchete a um artigo em que se questionava se deveríamos cancelar Aristóteles. Embora a autora estivesse, em verdade, defendendo a obra do filósofo grego, um dos problemas do seu texto está em oferecer aos leitores uma visão que reduz a vida de Aristóteles e o seu pensamento à dimensão do kitsch, ou seja, de algo reproduzido sem esmero técnico e que, por isso mesmo, não possui o valor que aparenta ter.

Segundo Arendt, é justamente ao reescrevermos, condensarmos e resumirmos o conteúdo de autores canônicos, com o propósito de gerarmos uma fonte de entretenimento, que corremos o risco de afetar a natureza dessas obras. Algo que acontece com frequência nas folias de cancelamento, pois, tenho para mim, que mais do que qualquer outra coisa, o filisteísmo cultivado encontra diversão nesse fenômeno.

Sobre a dimensão do kitsch na estética política, vale a pena conferir o recente trabalho de Rodrigo Cássio de Oliveira, professor da Universidade Federal de Goiás, de quem tomo emprestada a definição. Já na literatura do século 20, uma boa reflexão sobre o tema é-nos ofertada pelo escritor Milan Kundera em “A Insustentável Leveza do Ser” (1984):

“Se digo totalitário, é porque tudo quanto pode fazer perigar o kitsch é banido da vida: não só toda e qualquer manifestação de individualismo (a mais pequena discordância é um escarro cuspido em plena cara da risonha fraternidade), toda e qualquer manifestação de cepticismo (quem começa por pôr um pequeno detalhe em dúvida, acaba por pôr em dúvida a própria vida), toda e qualquer manifestação de ironia (porque no reino do kitsch é tudo para levar a sério)”.

Na querela sobre o cancelamento de obras e autores canônicos —a exemplo de Aristóteles, Shakespeare, Nietzsche e tantos outros— a partir, muitas vezes, de segmentos que se arvoram da verdade, em um posicionamento que o professor Wilson Gomes denominou, muito acertadamente, de “luta pelo monopólio epistêmico”, comungo da crítica de Arendt, influenciada pelo humanismo de Cícero:

“É uma questão de gosto preferir a companhia de Platão e de seus pensamentos, mesmo que isso nos extravie da verdade [...]. Podemos elevarmo-nos acima da especialização e do filisteísmo de toda natureza, na proporção em que aprendamos como exercitar livremente nosso gosto. Saberemos então como replicar àqueles que com tanta frequência dizem-nos que Platão ou algum outro grande autor do passado foi superado; seremos capazes de compreender que, mesmo que toda a crítica a Platão esteja correta, ele ainda será melhor companhia do que os seus críticos”.

*

Aos leitores que tenham interesse por este tema, no dia 29 de agosto, às 16h, eu converso com a pesquisadora Ludmila Franca-Lipke no canal de YouTube do Centro de Estudos Hannah Arendt.

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