Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Devemos ler autores suspeitos de ter cometido crimes, como o biógrafo de Philip Roth?

Importância de obras parece se tornar irrelevante diante da obrigação de mantermos uma superioridade moral

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Este não é exatamente mais um artigo sobre a polêmica envolvendo o escritor Blake Bailey, autor da nova biografia de Philip Roth. Talvez o seja, quem sabe? Esse juízo deixo ao critério do leitor.

Escritores como Jerônimo Teixeira, da revista Época, dos maiores leitores de Roth que eu conheço, bem como João Pereira Coutinho e Hélio Schwartsman, colunistas desta Folha, já propuseram algumas reflexões sobre o tema.

O escritor Blake Bailey, conhecido por suas biografias de Richard Yates, John Cheever, Charles Jackson e Philip Roth - The New York Times

João e Hélio criticaram o ideal de pureza ética que permeia algumas das principais queixas sobre a publicação da biografia. Ambos lançaram a provocação sobre quantos autores restariam no cânone se o critério para a apreciação das suas obras devesse necessariamente passar por um exame das suas condutas.

Jerônimo, por sua vez, levantou a hipótese de que os ataques a Blake Bailey, ainda que justificáveis, dada a gravidade das acusações que pesam contra ele, poderiam ser lidos como mais uma tentativa de demonização do próprio Philip Roth. Jerônimo, portanto, nos chama a atenção para o perigo de estarmos confundindo o biógrafo, acusado de crimes sexuais, com o biografado que, apesar de controverso, não teria cometido crime algum.

Resta-me aqui, portanto, propor uma discussão mais ampla sem necessariamente recorrer aos detalhes do caso, mas relacionando a decisão editorial de cancelar a publicação do livro à experiência daqueles momentos em que as minhas leituras sofreram alguma tentativa de interferência.

O uso da palavra interferência nesta análise cumpre o propósito de estabelecer o flagrante contraste entre esta —realizada com o único objetivo de atender os interesses de quem interfere— e a orientação, exercida a partir do livre intercâmbio de ideias no intuito de se trabalharem os dilemas relacionados a uma opção de leitura.

Isto posto, a questão que se impõe é: afinal, até que ponto estaríamos moralmente autorizados a ler um autor considerado imoral ou até mesmo acusado de haver cometido algum crime?

Confesso que, antes de me deixar atrair por esse tema, planejava escrever algo em comemoração do aniversário de Sigmund Freud —nascido em 6 de maio de 1856— e sugerir a leitura de “O Mal-Estar na Civilização” (1930).

Mas, por ironia do destino, entre esses dois assuntos impõem-se uma coincidência. Assim como Bailey, o médico britânico Ernest Jones, autor de uma das primeiras biografias de Freud, também foi acusado de crimes sexuais.

Em uma das vezes, em 1906, alguns dos seus pacientes em uma escola para crianças com necessidades especiais o acusaram de haver se comportado de modo indecente durante a condução dos exames de rotina. Na ocasião, em decorrência de um dos depoimentos, os policiais relataram ter encontrado uma “mancha” na toalha de mesa, na sala onde as consultas teriam acontecido.

Outra vez, em 1908, Jones foi acusado de ter falado sobre sexo para uma paciente de dez anos de idade acometida de paralisia em um dos braços. O conjunto desses escândalos fez com que o médico fosse viver durante um tempo no Canadá, onde praticou medicina até conseguir reestabelecer a sua reputação no Reino Unido.

As acusações que até hoje pairam sobre o caráter de Jones são graves e, como bem sugere a sua biógrafa, Brenda Maddox, apesar de inconclusas, talvez elas tivessem chegado a outro desfecho caso o depoimento das crianças tivesse sido levado a sério ou, quem sabe, se as amostras de sêmen encontradas na toalha houvessem passado por uma análise de DNA —uma impossibilidade na época.

Além disso, escrever sobre Freud, hoje, talvez seja tão complicado como emitir uma opinião sobre Philip Roth. Embora não caiba comparar a conduta de vida dos dois —ainda que eu assuma admirar determinadas posturas de Freud e repudiar certos comportamentos de Roth—, cada um permanece, ao seu modo, controverso.

Lembrem-se de Dora, cujo diagnóstico Freud errou, tratando-a como um caso de histeria agravado pela incapacidade da jovem de se desfazer de uma educação burguesa permeada por tabus sexuais.

Para muita gente, tanto esse como outros aspectos da trajetória de Freud seriam suficientes para que deixássemos de apreciar os seus escritos —de nada importando termos herdado de Freud o vocabulário que utilizamos para discutir a nossa vida familiar ou que ele tenha sido um dos pioneiros na compreensão da sexualidade infantil e um dos opositores da tese de que a histeria seria uma condição exclusivamente feminina.

De nada importando, também, que a biografia escrita por Ernest Jones, por mais execrável que ele possa ter sido, permaneça um documento fundamental para os leitores e os estudiosos da história da psicanálise.

Tudo isso parece tornar-se irrelevante diante da nossa obrigação de manter uma aparente superioridade moral, como se um texto fosse necessariamente capaz de induzir o leitor a incorrer nos mesmos erros, vícios ou até mesmo preconceitos do seu autor.

Freud, no entanto, tem muito a nos dizer, principalmente em relação às polêmicas culturais. Por exemplo, no texto já mencionado, ele comenta que os nossos juízos de valor seriam governados pelos nossos desejos de felicidade e que, portanto, não passariam de uma tentativa de escorar as nossas próprias ilusões com argumentos.

Em outra passagem, Freud lança a seguinte provocação: “A questão decisiva para a espécie humana é saber se, e em que medida, a sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum pelos instintos humanos de agressão e autodestruição”.

Creio que essa citação explique muito da contenda, tanto em relação à publicação da biografia de Philip Roth por Blake Bailey como a de outros livros cujos autores tiveram um passado polêmico, moralmente duvidoso ou, até mesmo, em algum aspecto, sabidamente criminoso.

Assim, deixem-me recordar alguns episódios da minha adolescência. Pois, sempre em algum momento da minha vida escolar alguém se sentiu autorizado a interferir nas minhas opções de leitura, de modo que, se eu tivesse embarcado na conversa dos outros —desde os colegas mais velhos até mesmo a psicóloga do serviço de orientação educacional—, eu jamais teria lido alguns dos autores que informam a minha trajetória intelectual.

Hoje, entretanto, percebo que muitas dessas tentativas de censura nada tinham a ver com a proposta teórica de certos autores ou mesmo com as suas ideias mais radicais. Ouso dizer que, durante essas intromissões, nenhuma das ideias de tal ou qual autor foi seriamente discutida.

O que, consequentemente, permitiu-me chegar à conclusão de que tais interferências não se traduziam em cuidados para comigo; sendo, portanto, sintomáticas da ansiedade dos censores em relação à dinâmica dos seus desejos reprimidos.

Não que eles tivessem medo, por exemplo, de que a leitura de Nietzsche fosse me transformar em uma espécie de Anticristo, nem que Jean-Paul Sartre ou Simone de Beauvoir me transformariam em uma libertina. Em verdade, eles estavam projetando em mim o medo de que a leitura de certos livros pudesse influenciá-los a agir de acordo com seus próprios impulsos; impulsos sobre os quais temiam ser parcialmente incapazes de controlar.

Finalmente, faço minhas as palavras da personagem de Hannah Arendt em filme homônimo realizado por Margarethe von Trotta: entender um autor não significa perdoá-lo. Além disso, acredito ser minha responsabilidade conhecer; incumbência de quem pretende escrever sobre esses assuntos.

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