Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

O homem que passou dormindo o fim do mundo

Conto de Moishe Nadir tem muito a dizer sobre os riscos que corremos quando desistimos de tomar decisões importantes

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É sempre bom quando descobrimos um novo autor e, com ele, passamos a ampliar o nosso conhecimento sobre determinado assunto, o que nos permite, ainda que indiretamente, uma maior compreensão tanto dos elementos de época como dos aspectos culturais que informam as obras de alguns dos nossos escritores prediletos.

Melhor ainda é quando essa descoberta parece se comunicar com o que estamos lendo naquele momento, ajudando-nos a trazer o autor recém-descoberto para o centro das nossas reflexões mais urgentes.

Leitora na Biblioteca Nacional Francesa Richelieu, em Paris - Gao Jing/Xinhua

Assim, na última sexta-feira, ainda triste com a notícia de que terei de passar por uma cirurgia na boca durante a minha última semana de férias no Recife, puxei da estante a minha edição de "O Conto Ídiche" (1966), da editora Perspectiva, e fui procurar algo capaz de me tranquilizar, nem que fosse apenas o nome de alguns dos escritores que admiro, coisa que normalmente faço quando estou angustiada, como se esses nomes possuíssem qualidades mágicas.

Talvez realmente possuam, quem sabe! Pois enfrentei alguns dos piores momentos da minha vida desse jeito, agarrada aos livros, sempre a evocar a presença de um autor com o qual pudesse dialogar e, desse modo, aprender a lidar com o que costumava ser e ainda hoje permanece difícil.

Fato é que, na sexta-feira, ao percorrer o índice do livro de trás para frente, passando por Chaim Grade e pelos irmãos Israel Joshua Singer e Isaac Bashevis Singer, deparei-me com Moishe Nadir, de quem não conhecia absolutamente nada, sendo imediatamente fisgada pelo título do seu conto: "O Homem que Passou Dormindo o Fim do Mundo."

Nascido na Galícia (região nos atuais territórios de Polônia e Ucrânia) em 1885, Nadir imigrou para os Estados Unidos aos 14 anos e, pouco tempo depois, começou a escrever para a imprensa ídiche norte-americana, que, na época, exercia importante papel no processo de adaptação dos imigrantes judeus recém-chegados do Leste Europeu na desesperada tentativa de escapar da pobreza e da violência que caracterizavam as suas vidas no velho continente.

Para melhor compreender o alcance e a importância da imprensa ídiche na vida americana durante o período de transição entre os séculos 19 e 20, basta dizer que, entre 1881 e 1924, 2 milhões de judeus deixaram o Leste Europeu rumo aos Estados Unidos, formando a maior diáspora de falantes de língua ídiche no mundo.

Segundo Eddy Portnoy, autor de "Bad Rabbi and Other Strange but True Stories from the Yiddish Press" (2017) —certamente um dos melhores livros que li durante as minhas férias deste ano—, os Estados Unidos da década de 1880 testemunharam o surgimento de inúmeras publicações em ídiche sobre os mais variados temas, como o esporte e a literatura, suprindo, desse modo, o desejo por informação de uma população de imigrantes letrada e cada vez mais em expansão: "Na ausência de universidades em ídiche, a imprensa tornou-se, simultaneamente, um fórum para notícias e um espaço para a literatura, as artes e a educação".

Ainda segundo Portnoy, foi nesse período de florescimento da imprensa ídiche nos Estados Unidos e na Europa que os seus escritores passaram a ser vistos como uma nova espécie de classe intelectual, ultrapassando até mesmo a importância dos rabinos enquanto figuras de autoridade.

Entre os escritores de língua ídiche estabelecidos nos Estados Unidos, Nadir foi um dos poucos que conseguiram garantir o próprio sustento com os textos que publicava em jornais e revistas. Dono de um estilo marcadamente satírico e influenciado por autores com Heinrich Heine, os textos de Nadir entretêm através da descrição de situações absurdas, ao mesmo tempo que evocam experiências dolorosas e inspiram alívio, levando-o mesmo a afirmar que escrevia besteiras para pessoas inteligentes.

Essas mesmas características também se fazem presentes em "O Homem que Passou Dormindo o Fim do Mundo". Nesse conto aparentemente despretensioso, o protagonista é apresentado como alguém que está sempre caindo no sono durante os momentos mais críticos e importantes da sua vida. Ele dorme durante comícios em massa, concertos de música e reuniões de negócio. Dorme durante o próprio casamento e também atravessa dormindo todos os incêndios que atingiram a cidade onde morava:

"Dormia nas mais plausíveis e implausíveis posições. Dormia com as mãos atrás da nuca e os cotovelos no ar. Dormia em pé, apoiado em si próprio para não cair. Dormia no teatro, na rua, na sinagoga. Aonde fosse, os seus olhos se enchiam de sono."

Um dia, no entanto, foi dormir, sentiu a terra estremecer, pensou ouvir um trovão e, quando acordou, reparou que o mundo havia deixado de existir:

"Deu com um estranho vazio. Sua mulher não estava mais ali, a cama tampouco, nem o edredão. Quis olhar pela janela, mas não havia janela para olhar. Quis descer correndo os três andares e gritar: ‘Socorro!’, porém já não havia degraus para descer, nem ar no qual gritar. E quando pretendeu pura e simplesmente cruzar a porta e sair, não havia porta, nem lugar para onde sair. Tudo se evaporara!"

À medida que a história se desenrola, o homem que já não tem mais casa nem mulher nem amigos percebe que também não adianta trabalhar no que sempre soube fazer para garantir o próprio sustento ou ir ao cinema para se distrair.

Mais adiante, ao constatar que o seu relógio novinho em folha também havia desaparecido, o personagem ainda tenta se esquivar de qualquer responsabilidade pelo que havia se passado enquanto dormia: "Está certo. Se o mundo se desfez, desfeito está. O que tenho a ver com isso? Afinal de contas, o mundo não é meu! Mas o relógio? O que tem o mundo a ver com o meu relógio?".

Só que o homem não consegue manter-se indignado por muito tempo. É que a realidade se impõe com cada vez mais força até ele se dar conta de que, na ausência do mundo, todas as suas preocupações com o dinheiro, o amor e o lazer deixaram de fazer sentido.

Embora esse conto de Nadir tenha sido publicado na primeira metade do século 20 e muito tenha a dizer sobre os eventos traumáticos da época, tenho para mim que ele também se aplica a uma reflexão sobre os riscos que corremos quando algo nos faz desistir ou nos achamos de alguma maneira impedidos de deliberar sobre aqueles acontecimentos capazes de mudar o rumo das nossas vidas. Pois, quando isso acontece, resta-nos apenas opção de repetir o triste e solitário lamento do personagem:

"Eu passei dormindo uma terrível catástrofe. Mereço o pior! Acudam, socorro, socorro! Onde estava a minha cabeça? Por que não fiquei de olho no mundo e na minha mulher? Por que deixei que desaparecessem, quando eram ainda tão jovens?"

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