Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Ao contar sua vida, Bashevis Singer recupera um pouco da nossa humanidade

Autor oferece as ferramentas necessárias para resistir na luta contra a atomização do indivíduo

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Conta-nos Celso Lafer que no outono de 1965, ao ministrar uma disciplina na Universidade Cornell, Hannah Arendt tratou da experiência do século 20 a partir da biografia de uma personagem imaginária, cujo destino fora determinado pela política, tal como acontecera com a própria filósofa por ocasião da ascensão nazista.

Segundo o diplomata brasileiro, o objetivo desse relato ficcional fora estimular o debate em sala de aula sobre a pertinência do nosso conhecimento político tradicional ante o ineditismo que caracterizou o último século, tema recorrente em muito dos textos de Arendt, ao exemplo do que encontramos nos ensaios colecionados em “Entre o Passado e o Futuro” (1961) e “Homens em Tempos Sombrios” (1968), alguns dos quais já mencionados por mim em colunas anteriores.

Aqui, sirvo-me de algumas sugestões de Arendt e Walter Benjamin para refletir sobre a importância da narrativa na transmissão do conhecimento, a tomar por exemplo a minha recente descoberta dos contos de Isaac Bashevis Singer. Tal como Celso Lafer, a psicoterapeuta e biógrafa Elisabeth Young-Bruehl —outra aluna de Arendt— comenta o importante papel dessa arte no trabalho da filósofa:

“[Arendt] contava histórias de como as pessoas surgem e transitam pelo mundo com facilidade ou desconforto, sobre as suas palavras e ações. Ela não usava de uma história da filosofia; contava-nos histórias sobre os filósofos [...]. [Arendt] reformulava essas histórias sem se submeter a uma sequência cronológica dos eventos, transformando-as em uma coleção de materiais para a reflexão [...]. Ao contar essas histórias, ela resgatava os filósofos no tempo, a fazer com que participassem do que Karl Jaspers chamou de ‘sala de convívio’ do debate e da comunicação”.

Homem com camisa branca e livros no colo
Retrato de Isaac Bashevis Singer em 1969 - Israel Press and Photo Agency (I.P.P.A.)/Dan Hadani collection, National Library of Israel/Wikimedia Commons

Arendt sabia que um bom “causo” —como da tradição do Nordeste do Brasil— contado por um hábil narrador, tende a se perpetuar em nosso imaginário à medida que também sentimos a necessidade de retransmiti-lo, nisto a acrescentar algo de nós: Quem conta um conto, acrescenta um ponto!

Muito dos contos de Singer evocam essa dinâmica, o que acontece quando o próprio autor é introduzido na narrativa, seja enquanto testemunha dos eventos, seja enquanto espectador dos relatos encenados por parentes e desconhecidos.

É através dessa estratégia que Singer transmite a experiência de homens e mulheres cuja vida fora brutalmente interrompida ou virada de ponta-cabeça pelos principais acontecimentos políticos do século 20, quase que a servir de pano de fundo para os ensinamentos da própria Arendt.

Quando estive no Brasil em dezembro de 2019, levei um grosso volume de contos de Singer. Esse livro acompanhou-me em todas as etapas da viagem, fazendo-me companhia desde a fria madrugada no aeroporto de Dublin até os dias em que visitei o sertão pernambucano para acompanhar um festival de trovadores em São José do Egito.

Surpreendi-me com a cópula “Inversão de Racismo”, da autoria do poeta Rogaciano Bezerra Leite (1920-1969), pela sua afinidade com o enredo e os protagonistas de Singer em "Uma Coroa de Penas”, narrativa sobre o conflito da conversão de uma moça judia:

“‘Amor não é racista...’ — Ela dizia,
Quando em beijos ardentes me abrasava.
Ao seu peito, nervosa, me apertava,
Ao meu peito, nervoso, eu lhe prendia.

Era noite na praia. Ninguém via
Aquele par que se beijando estava...
Nos braços do cristão — ela sonhava!
E eu sonhava — nos braços da judia!

No templo azul daquela noite calma
Eu lhe dei uma Pátria, na minh'alma,
E ela deu-me, em su'alma, a Canaã...

Desde então o racismo se inverteu:

— Vivo pensando que fiquei judeu,
E ela jurando que ficou cristã!”

Pela primeira vez em muitos anos, um escritor —Singer— fora capaz de despertar em mim a sensação de gozarmos da companhia um do outro, como se ele próprio estivesse ao meu lado durante toda a viagem, a compartilhar das minhas experiências. Dando-me a chance de reviver muitos dos saborosos momentos de quebra da rotina doméstica em que os meus pais e a minha avó, Olga, compartilhavam as suas histórias.

Essa sensação de intimidade com o autor é descrita pelo crítico e filósofo Walter Benjamin em “O Narrador – Considerações sobre a Obra de Nicolai Leskov” (1936): “Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem lê partilha desta companhia”.

Nesse ensaio, Benjamin reflete sobre o desenvolvimento da narrativa e a sua decadência, a comentar como o aprimoramento dessa arte esteve relacionado com a valorização coletiva da experiência, ao exemplo do intercâmbio de vivências que caracterizou o convívio entre os trabalhadores das medievais corporações de ofício.

Nesses ambientes, os mestres artesãos eram detentores do conhecimento tradicional do ofício a ser passado aos aprendizes, enquanto estes os transmitiam as suas experiências adquiridas através das usuais peregrinações por trabalho.

Walter Benjamin, então, comenta que o bom contador de histórias também seria um sujeito prático, uma espécie de artesão capaz de solucionar problemas ao tempo que oferece conselhos:

“O senso prático é uma das características de muitos narradores natos [...]. Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja de um ensinamento moral, seja de uma sugestão prática ou de um provérbio, ou de uma norma de vida — de qualquer maneira o narrador é um homem que sabe dar conselhos”.

Algumas das melhores histórias de Singer tratam de gente simples e empreendedora, representante de uma cultura que sempre estivera intimamente ligada à transmissão do conhecimento através de uma rica tradição oral como Zalman, o vidraceiro, e, Meyer, o eunuco —personagens de contos como “Paixões” e “Histórias ao Pé do Fogão.”

Em seu ensaio, Walter Benjamin relaciona a morte da arte da narrativa à evolução das forças produtivas. A não surpreender, portanto, que hoje tenhamos dificuldades para contar histórias. Ora, essa arte permanece fluente nas sociedades em que as experiências remanescem compartilhadas, pois, quanto mais desagregado o sujeito, menos compartilháveis serão as suas experiências.

Das muitas lições que podemos tirar da obra de Isaac Bashevis Singer, talvez, a mais urgente de todas seja a de que, no seu esforço para contar-nos sobre a sua vida entre os outros judeus no Leste Europeu, ele acaba por recuperar um pouco da nossa própria humanidade; dando-nos as ferramentas necessárias para resistir na luta contra a atomização do indivíduo.

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